Retrato de
mim mesmo: Um menino de cabelo recém cortado saindo da barbearia que fica ao
lado da papelaria. Calça jeans, camiseta que compõe o uniforme do ultimo ano
escolar, uma camisa xadrez de algodão, verde e azul, ainda com o perfume que
usei pela manhã, jogada por sobre o tosco uniforme azul e sem graça. O celular
está na mão, junto com o boné que sempre usava antes de cortar drasticamente o
cabelo.
Ando pelas ruas, as pessoas não me olham como
antes. É como se apenas por eu ter mudado o corte de cabelo, eu já não fosse
dali. Em parte era o que eu queria, mas de outra forma não.
Eu era como um
estranho, as pessoas não olhavam para mim, aliás, minha vida ali – na mente
deles – ainda viria a se concretizar, então eles me ignoravam.
O cheiro em minha roupa estava me sufocando,
o perfume fresco que me parecia tão bom durante a manhã fria, agora era
sufocante durante a tarde ensolarada. Os fios de cabelos ainda estavam em mim, nada que um banho não resolvesse.
Mas naquele dia eu tinha outros planos...
Tinha assuntos pendentes na biblioteca
publica da cidade. Eu amava livros – apesar de não haver livrarias na idiota
cidade de Desdém –, porém meus assuntos na biblioteca não tinham em nada
relação com os livros. Envolviam uma pessoa, e muitos romances e clássicos
empoeirados. Tenho mais histórias entre aquelas prateleiras, que todos os
livros ali guardados.
Quando cheguei diante da pequena porta de
madeira que dava entrada á pequena biblioteca, vi a bicicleta dela encostada-se
à calçada, distinguível principalmente pela cestinha rosa.
Adentrei com um cumprimento mudo para a bibliotecária
de cabelos curtos, ela meio que se
assustou com meu cabelo, mas logo me reconheceu e se conteve para não
responder.
Passei direto, indo pra próxima sala, era
onde ficavam os livros velhos, a sala onde ninguém frequentava Havia apenas
prateleiras, dispostas como numa trilha, preenchendo todo o pequeno espaço da
sala.
– Cinco patinhos voltaram do passeio – eu
disse chegando detrás de uma das prateleiras e removendo dois livros ao ponto
de ver o outro lado da prateleira. Vi mais dois livros saindo e um rosto
tomando forma naquele buraco.
Logo
ela deu a volta e se jogou em cima de mim, e com os lábio próximos de mais dos
meus sussurrou.
– Devíamos trocar esse código.
Então ela lançou-me um beijo caloroso,
daqueles que nem mesmo te deixam respirar. Sinceramente eu não gostava de
beijar assim, era estranho, sem sentimento, ela controlava.
Se me perguntassem se eu a amava, não hesitaria
em responder, mas o que mais me feria naquilo, era que só ficávamos escondidos,
beijávamos vorazmente, ela não permitia que eu a sentisse, que eu a
acariciasse.
– Espere – eu disse descolando meus lábios dos
dela. Continuei com o rosto próximo, as testas juntas, os narizes tocando, mas
sem partir para os lábios dela. – Eu… eu queria… Bem, você sabe. – Mudei subitamente meu semblante. – Não está… – minha voz falhava por nervosismo, sabia eu que
ela podia simplesmente me virar a cara e partir, ela não gostava de
mim a ponto de dizer eu te amo, mas o problema é que eu sim. – Não está dando
certo assim. Vivemos assim escondidos pelos cantos, na biblioteca, na escola,
nos mercados.
– De novo? – ela perguntou se afastando, e
olhando a esmo para uma das prateleiras. Puxei ela de volta pela mão.
– Eu quero
que seja diferente, não entende? – ela apenas me olhava nos olhos. Seus cabelos
brilhavam com a luz do sol que entrava pela janela atrás dela, seus olhos
também, aqueles maravilhosos olhos azuis. Então de repente ela parou de me
fitar e começou a correr com os dedos por sobre os livros mais empoeirados de
todas as prateleiras. Hora ou outra ela retirava o dedo e via o quanto de
poeira havia ali.
–Você sabe
que não dá – disse ela por fim. – Conhece meus pais, eles não deixariam nem mesmo…
– Eles não
deixariam – interrompi perguntando fazendo-a a voltar a atenção à mim, – ou você
não quer?
– Você não
entende?
– Entendo
sim, mas não é nada que eu não possa mudar. Eu posso falar com eles, eu quero.
– Mas não
pode. – ela parecia ter se chateado, voltou para atrás da prateleira que
estava quando cheguei, e voltou pegou no mesmo instante sua mochila azul e a pôs nas
costas.
– Onde você
vai? – perguntei tentando segurá-la, mas
ela se debateu de tal forma que a deixei ir.
…
O que eu
estava fazendo? Ficar com ela não estava ajudando em nada.
Em casa eu meditei
comigo mesmo, tentei fazer algo, mas o tempo não passava, parecia que só quando
eu pensava nela é que os ponteiros do relógio giravam.
Em um
momento de apneia proposital, pensava em tudo que me rodava. Ela agora vivia em
dois lugares: em Desdém, e em meu frágil pensamento.
Nos fundos
da minha casa, no quintal, creio que na trilha que levava pro bosque, pras colinas, onde eu ia com ela nos dias chatos e rotineiros, eu ouvi gritos de socorro. Não eram dela, aliás era ela a primeira que veio em meu pensamento, e poderia eu
distinguir há milhas de distancia o doce som da sua voz.
Era de outra pessoa.
Cheguei da
janela do quarto para ver se entendia algo, e constatar se ouvia mesmo gritos
de socorro, ou se era apenas uma alucinação da minha mente fraca.
– Socorro! –
o grito soou mais uma vez, tão alto quanto antes.
Desci as
escadas correndo, estava sozinho em casa, a porta dos fundos aberta, então
corri o mais rápido que pude.
Segui a
pequena trilha até a cerca, pulei-a e quando estava do outro lado, vi descendo
as colinas, vindo de onde começava o bosque, Bianca, correndo, histérica,
chorando com as mãos ensanguentadas.
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