sábado, 23 de fevereiro de 2013

2 - Bianca


  Desdém. Cidade das flores amarelas, dos sorriso sinceros, das pessoas bondosas. Aqui, o sol brilha como em nenhum outro lugar, aqui a brisa é mais suave e o gramado é mais verde.
  Pelo menos é o que tento imaginar todo maldito dia ao acordar.
  Eu odeio este lugar, com todas as minhas forças.
  Você já se sentiu preso numa jaula invisível? Acorrentado numa corda que nunca existiu? Assim é Desdém. A cidade em que seus medos se tornam reais, e seus belos sonhos são assassinados.
  Eu sou Bianca Biroli, tenho dezessete anos, não sou aquilo que possa ser chamada de "linda", mas também não sou feia. Moro com meu pai nas proximidades do velho bosque. Nossa casa é simples, simpática e aconchegante. Ele é dono da única padaria da cidade, o que o faz ficar fora de casa a maior parte do tempo. Assim sendo, fico na companhia dos meus pensamentos e meus fantasmas. Quando sinto–me só, pego meu velho violão e sento na beira do lago que está bem no meio do bosque, na clareira.
  Nestes últimos dias tenho feito muito isso, pois tenho sentido a falta da minha mãe. Sua morte ainda é recente e considerando sua trágica forma, ainda fico abalada. Meu pai não ajuda em nada, continua o mesmo animal que minha mãe tanto detestava. Só sabe brigar, gritar, falar palavrões e reclamar de tudo, realmente tudo.
  Meu Deus, como eu odeio este homem!
  Por estas e outras razões, sempre que posso, afogo minhas memórias neste lago. Mas nem isto tem aquietado a minha cabeça. Só tenho fantasiado em fugir daqui, de largar toda esta humilhação neste inferno, abrir as minhas asas e alcançar o Paraíso. Mas não posso, ainda tenho coisas para fazer neste lugar. Ainda preciso convencer alguém a ir embora comigo. Vai ser difícil, mas não impossível. Não para mim.
  Pela manhã na escola fui (mais uma vez) obrigada a olhar para todos aqueles fracassados. Eu não entendo como o ser humano consegue ser tão medíocre! O que me resta sentir é compaixão, e rezar por todas estas estúpidas almas na missa dominical. Que bom que a minha religiosidade venceu à maldade de Desdém. Mas nem todos os santos do universo conseguiriam desfazer o desprezo que sinto por esta cidade e seus conterrâneos.
  A aula foi um completo borrão. Anne, minha melhor (e única) amiga não pôde ir e graças a isso fiquei integralmente isolada.
  Foi então que o vi passando. A mesma postura arrogante, mesmo cabelo desgrenhado e sempre um livro surrado nas mãos. Às vezes, eu ouvia as meninas cochichando pelos corredores sobre como ele é charmoso, e não conseguia reprimir um sorriso de puro cinismo. Não entendia o fascínio que ele exercia, tendo a aparência de um sem teto. Mas em Desdém, o desespero em não morrer sozinha é tão grande, que estas meninas se apegam a qualquer um.
  Mas eu não. Eu vou além. Vou escapar daqui, te juro. E vou viver um grande amor. Só preciso descobrir como.
  Na volta para casa, vi coisas nada agradáveis pelos becos mal–frequentados e pedi perdão aos santos por não controlar meu olhar. Segui em frente, já planejando minha ida para o lago.
  Passei a tarde toda tocando meu violão, atirando pedrinhas n'água só para ver as leves ondas perturbando a superfície, comendo maçãs e de certa forma chorando...
  Quando a luz do sol começou a apagar–se, juntei minhas coisas e me dirigi à estrada, pois à noite; reza a lenda; que este bosque não é tão bonito, ou tão seguro, quanto durante o dia.
  No momento em que comecei a subir as colinas, ao longe avistei alguém deitado na campina. Aproximei–me devagar e vi que era Raquel, uma das meninas mais insuportáveis da escola. Mas seu abdômen estava sangrando muito, apertei para ver a profundidade do ferimento e gritei. Entrei em pânico, pedindo ajuda.
  – Não – ela sussurrou, abrindo um pouco os olhos – Por favor, não faça isso.
  – Estou aqui para te ajudar – murmurei, passando a mão em seus cabelos.
  Ouvi passos num ritmo acelerado se aproximando.
  – Não, por favor – ela repetiu, segurando meu braço no ar.
  Devia estar atordoada, coitada. Sua mente vagueava por suas lembranças, bem provável que sim.
  – Shhhi – sussurrei.
E então, fechou os olhos.

… 

  Ele chegou sem fôlego, os olhos arregalados. Era Gabriel, o menino dos livros surrados. Percebi que havia cortado o cabelo durante a tarde, bem melhor.
  – O que aconteceu ? – perguntou, e se virou para olhar o corpo – Raquel!
Ele abraçou o corpo com força e desespero. Em seguida, olhou para mim e gritou:
  – O que você fez? – Ele gritava tão alto que eu tive medo.
  Eu pisquei, aturdida.
  – Eu não fiz nada! – era inevitável incontestável, eu chorava também – Já a encontrei assim! Ele secou minhas mãos com seu olhar frio e impassível.
  – E as suas mãos? Como explica?
Estendi–as para ele e berrei, exaltada:
  – Elas estão sujas, de sangue, não de culpa ! Eu olhei o ferimento dela e tentei fazer o sangue parar, mas cheguei tarde demais Eu tentei ajudá-la!
  Ele me olhou e afundou o rosto nos cabelos de Raquel. Durante dois minutos só ouviu-se seu choro.

... 

  Fui embora. Não precisei ficar, os policiais disseram que voltariam a me procurar para pegarem meu depoimento. Fui pra casa, mas a noite voltei ao lugar em que tudo começou.
  Parei em frente a floresta fria e escura. Sabia que alguém me espreitava entre as folhagens, e sabia que devia correr. Mas quando seu corpo pede por adrenalina, você não consegue não obedecê-lo. E a única coisa que resta, é arriscar-se. Mesmo que o seu amor seja sacrificado por isto.





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