Vou dar umas
dicas de onde eu moro: as pessoas são frias, a cidade é sem cor, a vida perde o
sentido.
É! Acertou. Eu
moro em Desdém.
Onde nada
acontece, onde ninguém compreende que, quando você não tem um pai, não é
preciso ficar sendo sentimental ou tentando soar compreensivo.
Nada disso
importa para mim, a única coisa que eu quero é que me deixem em paz, que finjam
que sou invisível.
Sou apenas
Bernardo Lemes, tenho dezessete anos e moro nessa ínfima cidade desde que
nasci.
Meu pai? – acho que
o já citei – Desapareceu quando eu ainda era apenas um bebê, mas eu não quero
entrar em detalhes sobre isso, não agora.
Tento ser discreta,
nunca brigo, nunca chamo a atenção de ninguém, sempre me mantive longe das
pessoas evitando que elas me conhecessem, e ainda quero cultivar isso.
Já ouvi boatos a
respeito de eu não ter um coração, que estou sempre me mantendo indiferente a
tudo. Refleti por um tempo sobre isso e acabei concluindo que eles podem estar
certos.
Um pesadelo me
acordou novamente. Passei a mão pelo meu rosto para me manter acordado, era o
primeiro dia de aula e eu não estava passando em minha mente a idéia de
comparecer. Eu queria estar no lago, não sei o que me cativa tanto naquele
bendito lago… Parece que algo está para acontecer e ele quer que eu seja
testemunha disso, embora isso seja tremendamente surreal.
Foi pensando nele
que me levantei e fui tomar uma bela chuveirada matinal, o sol nem mesmo
nascera, mas estava um dia relativamente normal por aqui.
Coloquei uma
calça de abrigo, uma camiseta do Bring Me The Horizon, meus tênis Converse,
peguei meu caderno de desenhos e meu celular que coloquei na minha mesa de cabeceira
antes de dormir. Desci as escadas silenciosamente e saí pela porta dos fundos,
pois meu pátio dava para o bosque, que era o único lugar onde eu conseguia
encontrar a minha verdadeira paz.
Segui a antiga
trilha que dava para o lago. Era sempre uma visão arrebatadora toda vez que eu olhava
esse lago, a beleza dele sempre me atingia em cheio.
Atravessei-o e me
sentei em um esconderijo, cheio de arbustos em volta. Me doava uma bela
camuflagem.
Eu fiquei
desenhando por quase duas hora e meia quando ouvi passos indo em direção ao
lago. Ignorei o quanto pude, até que soou um grito e eu não me contive mais.
Larguei meu
caderno, meu celular, e corri até a beira do lago para ver o que tinha
ocorrido.
Só vi os
movimentos da água e levemente, ainda pela água turva, uma pessoa afundando.
Tirando minha camiseta e meus tênis, pulei.
Nadei até
localizar a pessoa – só conseguia ver seus cabelos ruivos, peguei seu braço e a
puxei-a até a beira do lago.
A coloquei
deitada perto do bosque e tentei sentir seu pulso, estava fraco, deveria ter
engolido muita água, então, depois que peguei meu celular e liguei para o
hospital dizendo o que havia ocorrido, fiz respiração boca-a-boca para ver se
conseguia tirar algum vestígio de água de seus pulmões. Adiantou, ela tossiu,
cuspiu água o suficiente para me deixar impressionado – o que não acontecia com
muita freqüência – e voltou a desmaiar.
Agora eu estava
imaginando ela cair, provavelmente deve ter tropeçado numa das pedras da beira
do lago. Ela foi fundo demais, teve sorte de eu ter conseguido trazê-la para
cima.
No tempo que a
ambulância demorou, eu pude admirar a bela garota que havia salvado: cabelos
lindamente ruivos, lábios tão vermelhos, pele tão clara e delicada que me
deixou fascinado. Logo fui trazido á realidade com o barulho de passos vindo
correndo em minha direção.
– Vitória! –
Alguém gritou histérica.
Olhei para trás e
vi Cláudia, minha vizinha, se aproximar correndo.
– Oh meu Deus! Oh
meu Deus! O que aconteceu?? – Ela falou quando chegou perto o suficiente de
mim.
–Ela caiu no lago
e… Bem, é tudo que sei – falei.
– Chame uma
ambulância – ela pediu enquanto
acariciava o rosto da garota.
– Foi a primeira
coisa que fiz depois de salvá-la.
Depois de
verificar mais a garota, ela olhou para mim.
– Você não
deveria estar na escola? – Ela perguntou erguendo a sobrancelha ruiva.
Sorri de leve, o
que era raro.
– Deveria? Mas
não estou.
A conversa foi
interrompida pelo barulho da ambulância se aproximando.
– Não vou contar
à sua mãe dessa vez – ela sussurrou antes dos enfermeiros virem correndo com a
maca. Eles colocaram a garota na maca enquanto me perguntavam como foi
exatamente o acidente, mas como eu não a vi caindo, não ajudei muito em quesito
informações.
Quando vi a
ambulância se afastando, fiquei pensando em visitá-la, mas por que eu visitaria
se eu poderia ligar para Claudia e saber se ela estava bem?
Vitória... seu
nome não saiu da minha cabeça até eu voltar para casa. Mesmo ele ecoando como o
grito louco de Claudia.
…
Já era o final da
tarde quando recebi uma ligação de Cláudia dizendo que Vitória estava bem e que
provavelmente ficaria três ou quatro dias no hospital. Suspirei aliviado, ainda
mais sabendo que as porcentagens eram altas de que ela sobrevivesse.
Estava pensando
nela novamente quando ouvi um grito alto vindo do bosque. Peguei minha lanterna
e saí correndo em direção do som. Atravessei as colinas e as árvores,
acompanhando os gritos, que se tornavam cada vez mais próximos.
Tive que olhar a
cena duas vezes para ela se tornar real: vi Gabriel com uma garota morta nos
braços – Raquel supus –, vi Lutrícia se afastando com horror e Bianca chorando
descontroladamente.
– Oh, droga! –
exclamei.
– Não é o que
você está pensando. – falou Gabriel baixinho.
– Eu a encontrei
ainda viva antes de Gabriel chegar. – disse Bianca, deixando mais uma lágrima
descer pelo seu rosto.
– Tá... ok... –
tentei não mascarar meu pânico, pois tinha muito sangue, o que deu certo. – Já
chamaram a polícia?
– E-e-eu chamei. –
Lutrícia estava tremendo.
Me aproximei dela
e coloquei as mãos em seus ombros para que ela olhasse para mim. Não gostava de
ter contato com as pessoas, mas nesse momento eu tive que fazer uma exceção.
– Calma, vai dar
tudo certo – sussurrei, mentindo pra mim e para ela, pois não estava nada
certo. – Não adianta ficar gritando nem nada do tipo, isso não vai trazê-la de
volta. Ok?
Ela olhou para
mim e assentiu ainda tremendo.
– Ok. – olhei
para trás e Gabriel estava me olhando como se eu fosse louco. – O que foi?
– Você é frio
assim sempre? – ele sacudiu a cabeça. – Ainda duvido se os boatos estão certos.
– Alguém aqui tem
que ser prático. – falei entrando em um silencio que se estendeu até ouvir a
sirene da polícia.
Eles somente
levaram o corpo e disseram que pegariam nossos depoimentos amanhã. Bianca foi
sozinha para casa, mas Lutrícia não tinha condições de ir sozinha, então eu me
ofereci para levá-la para casa. Ela se agarrou em meu braço e fomos caminhando
devagar até o policial nos chamar.
– Não quer ir
conosco, menina?
Lutrícia se
agarrou ainda mais em meu braço.
– Eu a levo,
policial. – falei firmemente.
Ele me olhou
estranhamente, mas assentiu.
Eu a levei em
silêncio, ela não precisava de nenhum comentário no estado em que estava.
quando chegamos em frente à sua casa, eu falei:
– Olha, eu não
sou um cara extremamente sentimental nem nada do estilo, mas se precisar
conversar, pode me ligar.
Ela recuperou sua
voz.
– Eu não... eu
não tenho seu número.
Eu peguei seu
celular e digitei meu número ali.
– Se precisar, é
só me ligar – ela assentiu e entrou em sua casa.
Voltei para minha
e sentei de volta em minha varanda. A morte da garota vai mudar algo nessa
cidade.
Sorri morbidamente, pelo menos será uma luz nesse Por: Djessica Millage
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