sexta-feira, 15 de março de 2013

10 - Bianca - Cores

   – Não ! Me solte !
   – Você não tem pra onde correr !
   – Socorro!!!
   – Cale a boca, sua vadia!
   – Nããããão!!!!
                                                                                        … 
   Acordei assustada. Olhei em volta e percebi que estava confortavelmente em meu quarto, não na floresta como segundos atrás.
   Meu travesseiro estava molhado. Levei a mão à testa, estava encharcada de suor, mas estranhamente gélida. Esfreguei-a, minha cabeça doía.
   Eu estava frente à entrada da floresta, descalça. Ouvi galhos sendo partidos sob fortes passos. Sabia que devia voltar para casa. Não só pelo perigo que a floresta oferecia, mas também pelo horário. Já se passava das onze horas da noite, e a essa hora, os poucos marginais de Desdém faziam a festa pelas ruas da cidade.
   Os passos se aproximavam cada vez mais da abertura, mas eu não recuei, ao contrário, respirei fundo e adentrei na mata.
   Tudo vinha como um borrão. Esforcei-me para lembrar do sonho por completo, mas nada vinha, então desisti. Fiz minha prece matinal e desci. O andar principal estava silencioso, meu pai já havia saído para trabalhar. Cada pedacinho da minha casa tinha o toque sensível de minha mãe. Cada cortina, cada tela pendurada nas paredes, cada flor pintada à mão na escadaria.
   Meu olhos arderam de acordo que a imagem do rosto da minha mãe foi se formando em minha memória. Para afastar a mágoa que senti chegando, corri para a estante e peguei o primeiro CD que alcancei, joguei-o no som e dei play. Assim que ouvi ‘It’s Britney, bitch!’ me lancei na cozinha e comecei a preparar meu café da manhã no ritmo da música. Em certo momento, um antigo copo de uma das coleções de minha mãe escorregou entre meus dedos molhados e partiu-se em mil pedacinhos brancos de porcelanato.
   – Merda! – berrei, odiando a mim mesma por ser tão desastrada em alguns momentos – Olha só que “cagada” eu fiz! Se a minha mãe estivesse aqui eu já t…. – calei-me.
   “Se mamãe estivesse aqui aqui eu não seria órfã. Se mamãe estivesse aqui eu não estaria fazendo mseu café da manhã.”, pensei.
   “Esquece, Bianca. O que você pode fazer é catar tudo isso antes que seu pai chegue. E caladinha”
   Agachei-me para recolher os cacos maiores, a fim de deixar apenas os minúsculos para serem varridos. Ao abaixar, percebi que meus pés estavam sujos. Achei estranho, mas manti minha atenção voltada à não cortar meus dedos no vidro.
   Após tomar meu café, fui para a escola, e mais uma vez Anne não compareceu, o que me deixou preocupada e decidi passar em sua casa no dia seguinte para ver se estava tudo bem.
   As aulas se arrastaram com o tédio habitual. Como sento na última cadeira, no cantinho da última janela da sala, tenho o luxo de simplesmente ignorar tudo o que os professores falam. Hoje deram avisos sobre nos mantermos seguros, não andarmos sozinhos, não saírmos de casa depois que anoitecer e (me mate!) não frequentarmos o bosque.
   – Ah, por favor ! Vocês não acham que estão sendo patéticos demais? Mesmo pra vocês, que são normalmente patéticos? – perguntei, inconformada.
   A Sra. Monteiro, professora de geografia não é conhecida por sua simpatia ou afeição por nós, alunos. Seus olhos, assim como de todos os outros presentes na sala, viraram-se para mim, frios e curiosos.
   – Como é, senhorita Bianca ? – Ela ajeitou seus óculos-fundo-de garrafas e crispou os lábios.
   – É que eu penso ser exagero todas estas coisas. Vocês estão fazendo tempestade num copo d’água – respondi, com um tom menos arrogante.
   A Sra. Monteiro tossiu, ajeitou os óculos de novo e sorriu com doçura.
   – Minha querida, eu entendo você questionar as regras, porque também já fui adolescente e sei como é divertido quebrar as regras. Mas, acima de todos, a senhorita devia se importar com tais normas – ela veio caminhando em minha direção, sempre um sorriso no rosto – A sua mãe, por exemplo...
   – Não-fala-da-minha-mãe – sibilei.
   Ela sorriu, com falsa pena e continuou o seu discurso.
   – Sua mãe foi BRUTALMENTE assassinada, mas isso não pode te afetar eternamente. A sua mãe morreu porque el...
   – Não fala da minha mãe ! – falei, em alto e ótimo som, para ninguém falar que eu não avisei previamente.
   – ... fez coisas que infelizmente n... – a mesa bateu com força em sua perna, fazendo-a bambear – Como você se atreve a agredir uma professora ?
   – Eu mandei NÃO FALAR DA MINHA MÃE ! – gritei, descontrolada. De relance, vi que todos me olhavam com medo. – Não fale da minha mãe! Não fale da minha mãe!
   – Eu só disse o que todos dizem. Não é culpa minha se a s...
   – NÃO FALA DA MINHA MÃE! – gritei mais alto ainda, eu não queria ouvir suas palavras.
   Me levantei e saí da sala, a cara inchada, o sangue fervendo, o corpo tomado pela ira.
   Não dei satisfação a nenhum dos outros professores, o portão da escola estava aberto, coisa rara, já que nos mantêm presos ali como criminosos.
   Fugi para as colinas, para as árvores silenciosas. Logo, o ambiente mudo me acolheu.
   Encostei numa árvore e chorei, me acabei de chorar.
   Chamei pela minha mãe, queria ela ali comigo. Mas aquilo nunca seria possível. Pois ela está morta, e eu realmente precisa superar aquilo. Mas era difícil, ao extremo.
   Após um tempo, deitei na grama e fiquei parada, olhando o céu, as nuvens. Fechei meus olhos, sentindo até mesmo a vibração do silêncio na pele.
                                                                                    …
   – Onde você está? – perguntei – Eu não quero te machucar.
   Os galhos se partiam mais a frente e segui o som. O ar era leve mas a noite estava tão fira que atravessava o fino tecido de minha camisola. Uma música começou ao tocar adiante, era uma balada toda feita ao piano, eu a conhecia mas não lembrava seu nome.
   – Espere!
   Uma mão me agarrou pelos braços e jogou-me no chão. Meus olhos provavelmente saltaram das órbitas, tamanho o meu medo.
   Havia um palhaço em minha frente. Mas não um palhaço feliz, um apalhaço qualuqer, brincalhão. Era um palhaço frio, sem sorriso e sem olhar.
   Seu rosto era pálido e no lugar dos olhos haviam dois buracos negros.
   – Sorria, doçura!
   Ele levantou uma faca de um tamanho descomunal, na altura do meu pescoço e veio sobre mim.
   – Não! Eu sei quem você é! – Eu não sabia quem era, mas o sabia ao mesmo tempo, o rosto me era me era visível, mas identificável. Eram memórias em um sonho.
                                                                                   …
   Abri os olhos, ofegante como na manhã passada. De novo o mesmo sonho. Ou seria uma lembrança de um sonho? Não sabia de mais nada, que dia era, ou mesmo se era dia, tarde ou noite. O céu estava escuro, negro como a morte, mas para mim, não importava.
   A unica certeza era de que a grama me incomodava, e eu queria minha cama.
   No caminho de volta pra casa, vi uma multidão de pessoas, pareciam todos os habitantes da cidade reunidos numa especie de comício, perto da casa do chefe de polícia. Cheguei perto e me assombrei com o que vi.
   O ônibus do Acampamento da cidade havia sido incendiado, acho. Não quis perguntar ninguém, detestava caçar assunto com aquela gente.
   A cena me trouxe visões terríveis e chorei. De pena daqueles pais que também estava ali, chorando, lamentando diante os escombros de seus filhos. O ônibus ardia em chamas, o céu brilhava, e o que antes eu achei ser foguetes, eram um visível sinal de desolação.
   Mais lembranças me afrontaram naquele instante, não só apenas a da minha perda pessoal, mas a da perda de uma especial.
   Gabriel, numa jaqueta velha, descalço, corria em direção às chamas. A angustia refletia em seus olhos verdes, brilhando mais que o fogo que lutava por espaço naquele lago colorido.
   Não suportei mais olhar para aquilo. Fui obrigada a ir embora no momento em que ele foi pego, e seus olhos, involuntariamente, se fixaram nos meus.
   Fui obrigada a sair dali. O que ele buscava eu não sei, mas a dor dele me feria, eu estava senível, eu estava em ruínas.
   Por que existir se vivemos perdendo quem amamos?
   Qual a finalidade de viver em falsas alegrias se uma hora ou outra a tristeza vai chegar e mostrar quem realmente manda ?
   Naquele dia me revelei só, em meio à dores de ambos os lados.
   Eu não queria viver ilusões. Sem mãe, sem um pai de verdade, sem amor, sem amigos, sem futuro. Prefiro morrer. A morte iria me trazer a paz, o descanso, a tão almejada esperança. Uma nova ‘’vida’’, sem querer ser irônica.
   E, acima de tudo, a morte me tiraria de Desdém. Esta maldita cidade onde tudo morre, nada cresce, nada vive.
   Cheguei em casa e arrumei meu quarto. Escrevi uma carta para meu pai que seria lida daqui a um mês, quando ele daria minha falta e já me encontraria em estado de decomposição. Vesti um jeans detonado, uma camiseta escrito ‘Let it Be’ e meu velho Converse azul. Fui ao armário da cozinha e peguei vários vidros de comprimidos e uma sacola plástica transparente. Junto, levei um copo de leite gelado.
   Já no meu quarto, liguei meu computador e selecionei minhas melhores fotos e coloquei para tocar junto a uma musica que dizia alo sobre “ Glitter no ar”
   Minha cama estava coberta com uma colcha que minha mãe havia tecido especialmente para mim. Ao lado do travesseiro estava Ted, o Sapo; o único urso de pelúcia que ganhei durante toda a minha vida.
   Dizem que na vida há muito o que se conquistar. Quem disse isso nunca esteve em Desdém.
   Dizem também que quando se bebe o leite, toma os comprimidos e embrulha a cabeça com o saquinho plástico, a morte vem de maneira simpática. Calma. Indolor. Bonita.
   Eu não queria sofrer mais, não queria sentir dor nem chorar mais do que já chorei.
   Dizem que é pela falta de ar misturada à calmaria do espírito, que faz você ver explosões coloridas, nuvens vermelhas, douradas e amarelas. Tudo diferente do preto e branco desta cidade.
   Mas se analisarmos bem, chega um tempo em que o sangue fala mais alto que nós mesmos e envolve-nos em um apertado abraço. Assim ele tem feito com Desdém. Mas não comigo. Eu não partirei pelo sangue. Partirei pelas cores.
   Deito-me, bebo o leite, engulo os comprimidos e embalo-me junto ao som da música. Seguro na mão do Ted, meu único amigo...
   Quando menos espero, vejo uma bola lilás, depois outra azulada, rosa, laranjada.
   Então, fecho os olhos.
   ‘Vadia, eu vou te matar !’
    Foi minha última lembrança antes de ver uma enorme e dolorida luz branca.
    Mas não. Ainda não foi a minha tão esperada luz no final do túnel. 


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