sexta-feira, 1 de março de 2013

9 - Gabriel


A lembrança ainda é fresca na memória. Jamais pude imaginar tantas pessoas envolvidas numa coisa tão repentina.
Por anos pensei sempre estar sozinho, pensei que os bosques úmidos somente a mim abrigavam, mas infelizmente, esta certeza de solidão esvaiu-se na pior hora.
– Socorro! – Aquele grito ecoava na minha mente, me assombrando me roubando de mim e me levando de volta para aqueles angustiantes momentos.
Hora ou outra, eu balançava a cabeça no intuito de espantar essa má lembrança e obrigava-me a lembrar de bons momentos. Porém estes me machucavam tanto quanto os ruins.
– Adivinha que dia é hoje – ela me pediu num dia qualquer. Tinha me dito antes que queria passar o dia comigo, e que não importava o lugar, mas queria estar comigo.
– Segunda? – Respondi com mais uma pergunta enquanto caminhávamos de mãos dadas pelas colinas que levavam aos bosques.
– Claro que não, seu bobo. – ela ria, e eu mesmo sendo o tolo da história sorria junto dela. Um vento fraco soprava, os cabelos dela voavam com vivacidade, perfeitos fios negros, chicoteando o vento. – Tenta de novo – então dizendo isso ela balançava meu braço, tão meiga, tão perfeita. Os olhos negros brilhavam com o sol fraco do fim de  tarde, eram seus olho que clareavam o dia, pois o sol opaco somente clareava o céu.
– Que tal… – eu hesitava – quinta-feira?
– Para com isso – ela riu mais alto ainda. – Você sabe muito bem que dia é hoje – ela disse chegando mais perto de mim, me dando uma deixa para a resposta certa e um beijo.
– Não – eu disse segundo antes de nossos lábios se encontrarem, logo eu os separei e completei minha resposta falsa. Sim eu sabia, mas vê-la sorrindo daquele jeito, feliz com a expectativa, me cativava tanto a ponto de eu querer prolongar aquela conversa chata aos olhos de terceiros, até o fim da minha existência. – Então hoje é…? Terça?
– Hahahah! – Ela ria tão engraçado, era como se ela falasse a gargalhada, mas soava tão natural que era bonito de se ouvir. – Para com isso.
– Então me diga – eu pedi me pondo de frente a ela, o corpo de encontro com o dela, os olhos rentes, ela me olhando e eu a olhando. – Que dia é hoje?
– Hoje? – Ela perguntava prolongando do mesmo jeito que eu fazia. – Hoje é sábado.
– Errado – eu dizia sério e risonho. – Hoje é o dia do nosso aniversário. – Então eu a beijava, e em meio ao beijo completava. – Dois meses perfeitos com você.
Enquanto lembrava-se disso, eu não sabia se devia chorar de saudade, ou sorrir de alegria. Eu não a tinha mais, porém eu vivi aquilo com ela, ela me fez feliz, ela recebeu todo o meu amor, todo o meu afeto, e eu simplesmente a perdi.
A  opção “Chorar” prevalecia.


Tomei cinco velas na mão, apenas de calça e sandálias, eu sai de casa pelas portas dos fundos.
O vento frio abraçou meu dorso nu, como num abraço reconfortante.
Segurei a cinco velas juntas na não direita, e com um isqueiro verde acendi todas elas. Pretendia subir toda aquelas colinas, atravessar a floresta até o ponto onde eu a perdi, e lá deixar tais velas para ela.
A grama estava úmida, devia ter chovido, eu não sabia ao certo, na verdade não sabia de nada. Eu a havia perdido há menos de três horas e a dor já me consumia.
Jamais vira aqueles cantos tão silenciosos, o vento soprava frio, as velas me aqueciam em parte, a cera quente escorria até meus dedos, mas eu não me incomodava, não era a primeira vez que eu fazia aquilo.
Pensei em pegar o celular e os fones de ouvidos no bolso da calça preta, mas o silêncio ali me era mais confortável. De fato eu só ouvia musica em momentos como aquele. Tais músicas me acalmavam, mas eu não precisava me acalmar naquele momento. Minha respiração e o som da grama sob meus pés já bastavam.
A Lua brilhava, era a primeira noite de lua nova, mas ainda assim sua luz sozinha não seria suficiente para iluminar meu caminho. O céu estava lindo, as nuvens corriam rápidas, a lua parecia se mover em direção oposta. Fazia-me lembrar das noites que passei como ela no colo, ela me perguntava se eu percebia a ilusão de óptica vinda do próprio céu, eu dizia sim, então bancava o cientista e explicava o que era. 
A grama entrava pela minha sandália e acariciava os meus pés, era única coisa que eu sentia aqui na terra, pois meu pensamento, o resto do meu corpo, voava junto dela próximo á lua.
Nossas brigas eram constantes, mas de toda nenhuma nos manteve longes por mais de 12 horas. Era como se alguém tivesse nos dados o vinho ervoso do amor, eu era Tristão, e ela Isolda, e a ideia de nos manterem separados feria mais profundo que uma espada de dois cumes.
Seus pais não sabiam sobre nós, ninguém em toda desdém. Ao menos eu pensava.
A cada passo que eu dava a dor me consumia mais.
Quando adentrei o bosque, deixei para trás o céu límpido e as colinas, meus dedos tremiam, boa parte da cera cobrira minha mão esquerda, mas isso não a impedia de tremer. Eu não sentia frio, sentia dor, uma dor que só eu sentia e que só eu sentiria. A minha dor sempre foi diferente da de todos.
Mas afinal, eu preciso da minha dor, é ela o que eu sou. O que seria de mim se jamais tivesse chorado? Jamais tivesse perdido? Ou Jamais tivesse amado? Porque amar é sofrer, amor é dor, e minha dor é o que sou. Eu sou Amor.

...

Foi difícil encontrar o local onde eu a vira pela ultima vez, mas eu sabia ao certo onde era, minha mente me obrigava a lembrar, uma pedra ao lado, uma arvore com teias de aranha ao lado, onde Bianca ficou o tempo todo chorando.
Não culpo Bianca, nem mesmo acredito que foi ela quem fez o trágico fato. Mas de certa forma não sei no que acreditar.
Quando encontrei o lugar, coloquei as velas por sobre a pedra, e ao me levantar passei os dedos pelo cabelo curto, procurando ali os longos fios que eu não possuía mais.
Eu mudei fisicamente. Devia mudar agora com essa perda?
Desci aqueles morros tão lentamente quanto subi, não pensava em nada, a não ser em não pensar.
Mas em certo ponto eu não suportei, e a visão dela veio com força para machucar meus olhos. A menção de imaginar aqueles olhos me fazia chorar, e ver aquele rosto, mesmo que em memórias, dilacerava vorazmente meu coração.
Eu não contive o grito.
– Deus! – Eu gritei com toda a minha voz, abri meus braços, e com o rosto molhado erguido para o alto na direção do céu, eu mostrei a Deus toda a minha dor. – Não entendo.
Não havia mais estrelas no céu, a lua brilhava teimosa por detrás das nuvens, e chorando, daquele jeito, quebrantado, e sem resposta, eu voltei para cima, para onde havia deixado as velas.
Passei pelas velas e as ignorei, segui enxugando as lágrimas para além das arvores, iria contornar o bosque e sair do outro lado da cidade, não suportaria o confinamento dentro de casa.
À essa hora, talvez Gabriela já tenha chegado do acampamento, Tiago estaria fazendo macarrão instantâneo na cozinha, e tudo que eu veria eram atos de amor paterno, o que eu jamais tive, tanto amor paterno, quanto outro tipo de amor, exceto com Raquel.
Gabriela só me lembraria mais ainda do meu amor por Raquel. Talvez porque fora por sua causa que nos unimos, ou porque as duas eram tão parecidas no jeito de agir, a forma com que mordiam os lábios, mesmo ela tendo 4 anos, ou ainda por conta da forma que ambas amavam se maquiar dentro do meu quarto enquanto eu entediado de olhá-las me perdia no computador lendo milhares de histórias.
Será que ela já sabe? Será que Tiago já sabe?
Dividíamos a velha casa que meus pais me deram desde que Gabriela nascera, ambos se cuidavam, eu era seu anjo da guarda, como ele me chamara na época turbulenta em que a filha nasceu, tendo ele 15 anos; e ele para mim era meu pai, tão maduro quanto.
Já podia ver a cidade lá embaixo, as luzes, as casas, os becos vazios, e as calçadas silenciosas.
A duas quadras fica o centro, há uma praça arvorejada, com bancos, e um palanque em uma ponta, uma fonte no centro, e ao redor varias lanchonetes. Pretendia ir para uma das lanchonetes, sentar e quem sabe comer alguma coisa, olhar para o tempo, ou conversar com um dos meus colegas de trabalho, os garçons que nos fins de semana trabalhavam ali comigo, no mesmo ambiente, servindo as mesmas mesas, os mesmos rostos na inútil Desdém.
Quando sai do bosque, o frio ainda me rondava, ainda estava sem camisa, mas os dedos já paravam de tremer.
Em menos de cinco minutos eu já estava parado diante da lanchonete, tinha andado com passos largos, firmes e frenéticos, sem cansar, mas sem parar.
– Oi – falei normalmente com Jessica, a garota que ficava no caixa, éramos amigos, trocavamos livros semanalmente.
– Oi – ela respondeu. – O que te traz aqui?
Me perguntei se ela já sabia do que havia acontecido. Cidade pequena, noticias voam.
– Nada em especial. – Respondi constatando que ela não sabia, seu rosto não demonstrava um pesar, nem certa pena, aquela típica dos cidadãos de Desdém.
– Está com frio? – ela perguntou percebendo como eu estava com os ombros recolhidos. Assenti com a cabeça e ela se virou e pegou uma jaqueta na cadeira atrás dela. – Toma veste isso. – Não recusei. – Ficou sabendo do acidente? – Quando ela terminou a pergunta meu coração congelou.
– Que acidente? – Falava ela de Raquel? – Quando?
– Hoje, há pouco tempo. O chefe de policia bateu o carro no ônibus do acampamento. – Meu coração definitivamente parou. Gabriela estava naquele ônibus.
Instintivamente levei minha mão ao bolso, precisava ligar urgente para Tiago, se é que era verdade sobre o acidente. Esperei alguns segundos com a mão dentro do bolso já segurando o celular, esperando que ela sorrisse e dissesse que era mentira, mas ela não o fez.
Quando abri o celular, haviam varias ligações perdidas, estava no modo silencioso, e a caixa de entrada lotada.
– Quando foi isso? – Perguntei, ela obviamente percebeu o descontrole no tom da minha voz.
– Agora há pouco, em frente a casa do chefe de policia.
Eu não esperei que ela dissesse mais nada, não falei também, não agradeci pela blusa, nem prestei satisfações, apenas corri como jamais fui capaz de correr. O celular não encaixava no formato do rosto, e eu não ouvia se chamava ou caia na caixa postal. Era agonizante.
Quando vi o estado de calamidade do local, pensei ser tarde de mais.
Os curiosos da cidade já se aglomeravam em todos os cantos, o acostamento de ambos os lados da rua estavam lotados de carros, e na esquina, um carro pegava fogo, e um ônibus também.
Corri mais ainda. No meio da multidão de curiosos eu reconhecia rostos, via o vizinho, alguns amigos da escola, mulheres chorando, e Bianca.
Quando vi que realmente tudo estava incendiado, e que se caso alguém tivesse dentro do ônibus, já haveria morrido.
A área estava fechada, fitas amarelas demarcavam o ambiente, e o caminhão de bombeiros tentava controlar as chamas com jatos de água.
Fiz caminho em meio a multidão que se aglomerava perto dos limites querendo ver os detalhes para depois passar em diante. Passei por baixo da fita amarela com linhas pretas, e corri para mais perto do ônibus. Não sabia o que me movia, o medo, ou algo maior.
Dois policiais tentaram me impedir, enquanto eu corria eles me perseguiram. Todos olhavam para mim, mas não importava, eu me motivava mais assim, com os tiras me perseguindo, e as pessoas loucas para mais um detalhe trágico no debate do dia seguinte nas portas dos bares.
Eu não podia creditar que Gabriela talvez estivesse lá dentro, meus olhos varriam todo o lugar em busca de vestígios dela, mas logo fui incapacitado, um dos policiais me agarrou pelo braço esquerdo.
Lancei o braço livre no rosto dele, provavelmente tenha quebrado, mas não sei ao certo.
Ele gritou, o outro pediu que eu parasse, eu o xinguei, e corri ainda mais.
Antes que o outro me alcançasse, me virei e bati nele também, ele ia sacando a arma, quando caiu no chão.
Mais dois policiais entraram na corrida comigo, foi então que me dei conta da tolice que eu estava cometendo, do suicídio inútil que eu estava tramando.
Porém eu não parei. Que eu morresse então, era o mínimo que eu devia fazer. 
Os outros dois policiais me pegaram, eu não relutei. Me prenderam, eu gritava, mas deixei que me levassem. 
Talvez eu já a tivesse perdido. Ambas.

Por: Fabrício Medeiros

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