quarta-feira, 3 de abril de 2013

13 – Bernardo – Sentimentos


Minha mãe, que normalmente chamava de Laura, chegou por volta das 11h30min da noite horrorizada.
Pausei meu jogo – em meu Playstation – e me aproximei calmamente perguntando:
                – O que houve?
– Um acidente no centro da cidade, seguido de explosão, um garoto correu desesperado e, por ter invadido a cena, foi preso... Foi terrível!
                Franzi a testa surpreso, três desastres em um dia... Hoje se tornaria um dia lendário para Desdém.
Laura olhou-me estranhamente.
– Você não está assustado ou receoso com tudo isso? – perguntou.
– Não envolve a mim. – falei dando de ombros e fui até a cozinha, estava a fim de beber.
Abri a geladeira e peguei uma cerveja, de vez em quando ter uma mãe alcoólatra tinha suas vantagens, como ter sempre cerveja na geladeira e whisky nas garrafas de academia*.
– Desde quando você é tão insensível? – havia me esquecido que Laura não conhecia este meu lado, pois eu evitava conversar com ela.
– Desde quando você se importa? – rebati abrindo minha cerveja e tomando um gole.
Ela recuou um passo.
– Em sempre me importei com você, sou sua mãe!
Revirei os olhos.
– Se você realmente se importasse comigo, você saberia que, quando eu fugia de casa, eu ia até Claudia, ela cuidava de mim como se fosse minha mãe, pois você nunca pensou em ser uma. – falei indiferente. – Que ao invés de cuidar de mim, você afogava suas mágoas em bebidas por um homem que nem ao menos deu sinal de vida depois que desapareceu, que não se importou se ficaríamos bem ou não, que sumiu como se não tivesse deixado nada de importante para trás.
Ela ficou paralisada, mas continuei falando:
– Então, antes de dizer que se importa, pense se isso é a verdade. – falei enquanto terminava minha cerveja e ia pegar outra. – Pois não basta se nomear mãe, tem que agir como uma.
Com uma cerveja em cada mão, subi para o meu quarto sem me importar com a sua reação, afinal ela nunca se importou com a minha quando eu a encontrava apagada no sofá cheirando a vodca.
Observação: eu tinha oito anos nessa época.
Encerrei-me em meu quarto e abri mais uma cerveja. Eu sei que não foi certo jogar na cara dela tudo o que aconteceu, mas eu tinha que falar o que estava acumulado em minha mente há muito tempo antes que eu surtasse com tudo isso.
Liguei meu computador e fui mexer em minha playlist de favoritos. Liguei o aleatório e a primeira música que tocou foi Don’t Go do Bring Me The Horizon.
Eu adorava a letra dela, digamos que dizia exatamente como eu me sentia. Precisava urgentemente de uma pessoa que me salvasse desse inferno, dessa desolação que sempre estou... Precisava de uma pessoa que não fosse embora.
Acabei pegando meu caderno de desenho e, enquanto bebia minhas cervejas, delineava o rosto da garota, Vitória. Seus cabelos ruivos haviam me encantado tanto quanto seus lábios, me fazendo imaginar como seria beijá-la...
Sacudi a cabeça fechando abruptamente o caderno. Eu não sabia o porquê de meu interesse nela, eu a havia visto somente hoje, e desmaiada ainda por cima!
Algo me dizia que ela mudaria algo em minha vida, mas se era para melhor ou para pior, eu sinceramente não sabia dizer.
...
Passei sete dias sem falar com Laura. Só a ouvia sair de manhã para trabalhar e voltar às onze horas da noite.
Nesse meio tempo eu comecei a tocar um pouco em meu piano e notando que eu estava um tanto enferrujado, afinal eu havia aprendido com Claudia aos sete anos e parei de tocar aos quinze.
No domingo ela chegou em casa às oito horas – ela não trabalhava nos domingos, então eu não tinha a mínima ideia de onde ela havia ido – e se impressionou ao me encontrar sentado em frente a piano tocando a mais doce das melodias feitas por mim.
Ela se aproximou do piano e ficou me observando até eu tocar as últimas notas.
– Já fazia tanto tempo que você na tocava. – comentou ela baixinho.
– Eu sei. – falei simplesmente.
Eu queria falar para ela que eu sentia muito pelas coisas rudes que eu havia dito, mas as palavras não saíam, elas travavam em minha garganta como se eu não tivesse permissão de proferi-las.
Acabamos ficando em um clima estranho, então Laura quebrou o silêncio.
 – Tenho uma novidade para lhe contar. – comentou ela indo para a cozinha.
A segui curioso.
– E o que seria?
– Eu entrei no AA. – disse sorrindo. – Agora eu quero sair disso, quero largar isto que só me fez infeliz e a você também.
Arregalei meus olhos em surpresa.
 Laura no Alcoólicos Anônimos? Parece até uma piada.
Todos sabiam que ela tinha um pequeno grande problema com bebidas, Laura ir ao AA é o eufemismo do ano.
– E você acha que irá realmente adiantar? – perguntei.
Ela deu de ombros e pegou uma jarra de suco da geladeira.
– Se eu tiver força de vontade, conseguirei. – disse simplesmente.
– Se você acha... – acabei deixando para lá, era a vida dela afinal de contas.
Fui em direção a escada, mas Laura me chamou.
– Bernardo, soube que você não foi aos três primeiros dias de aulas, então amanhã você irá. – disse decidida.
Olhei para ela abruptamente.
– Como? – eu acho que ouvi errado.
– Você acha que faltando à aula vai conseguir sair de Desdém? – perguntou diretamente.
Estreitei meus olhos, mas a deixei falar.
– Pelo menos termine o ensino médio, depois você pode fazer o que quiser, afinal, terá dezoito anos.
Suspirei, ela não iria desistir.
– Ok, amanhã irei à aula. – falei cedendo.
Ela sorriu.
– Que bom.
Virei e subi as escadas, eu sabia que Laura estava tentando se aproximar de mim, mas eu não conseguia deixá-la entrar. Acho que depois de tanto tempo acostumado com ela me ignorando, acabei não sentindo mais falta de sua atenção.
Deixei minhas coisas devidamente organizadas para amanhã e me deitei, meus pesadelos haviam parado desde que salvei Vitória do lago, e agora a única coisa que sonho é com aqueles cabelos ruivos balançando contra o vento e saber a cor de seus belos olhos.
Pensando nisso, adormeci.

                                                                 ...
Acordei com meu travesseiro todo molhado de suor. Era só eu comentar que ele havia parado que o pesadelo voltava com força total.
Olhei a hora em meu celular, eram 06h15min da manhã. Então levantei-me e fui tomar um banho, pois ainda estava com os efeitos do pesadelo.
Coloquei uma calça jeans surrada, uma camisa azul escrita “Fuck All” e meus velhos All Star. Desci nada animado e Laura estava saindo.
– Deixei café pronto pra você. – avisou-me e saiu.
Fiz umas torradas rapidamente para mim e servi-me um pouco de café. Consegui terminá-lo em quinze minutos.
Peguei meu Ipod e meus fones de ouvido, pois se eu iria passar pelo centro da cidade, teria que ser com distração. Liguei o Ipod e coloquei Not Alone do Red, as letras dessa banda eram extremamente belas, e esta música em especial tocava algo dentro de mim que eu não sabia explicar...
Saí chaveando a porta e fui vagarosamente para a escola.
Senti vários olhares em minha direção, mas os ignorei, era sempre assim quando eu passava pelo centro. Quando se tem uma reputação como a minha por aqui, é difícil desmanchá-la ou refazê-la, é por isso que a deixo como está, o povo de Desdém adorava falar de mim. Quer dizer, eles gostavam de falar de qualquer um que não se encaixe aqui.
A minha escola era velha, descuidada e sem graça, tinha uma torre no meio do prédio com um relógio – aquilo quando tocava era um caos para os tímpanos.
Entrei e vi todos os alunos entrando na sala, então tirei meus fones, entrei sem olhar para os lados e me sentei no lugar habitual. Vi as pessoas olhando para o fundo da sala e um grupinho de garotas escandalosas falando e rindo, e Laura ainda queria que eu terminasse o ensino médio.
Como diria Funérea Depressão: Ai que infortúnio!
Bateu e logo o professor Augusto entrou na sala. Hoje tinha literatura, eu ainda não tinha pegado o horário deste ano, e nem iria.
Ele largou seu material em sua mesa e foi direto para o quadro escrevendo duas frases e perguntou a quem pertencia:

Tarde demais o conheci, por fim; cedo demais, sem conhecê-lo, amei-o.

“Duvida da luz dos astros,
De que o sol tenha calor,
Duvida até da verdade,
Mas confia em meu amor.”

Nem levantei a mão, apenas respondi:
– Shakespeare, professor. – falei rapidamente.
                –Muito bem, está correto. –disse o professor sorrindo animadamente. –Agora, alguém aqui sabe me dizer que conceitos a primeira frase emprega, ou quer dar sua opinião a cerca desse glorioso sentimento que é o amor? – Augusto falou empolgado.
Como ninguém respondeu, uma garota no fundo da sala falou:
–Respondendo a segunda pergunta, eu acho que foi a loucura, professor, o que mais motivaria alguém a falar assim? – falou a garota asperamente.
Eu já acho professor que quem falou esta frase estava vivenciando o mais puro e verdadeiro amor. – rebati um tanto chocado.
Na primeira frase, por exemplo, fica explicito que eles mal se conheciam. Como pode o ''amor'' existir dessa forma? Entre dois seres que mal se conhecem. O amor por tanto não motivou nada. Talvez o desejo sim. – ela praticamente cuspiu as palavras.
Essa garota era boa em argumentar... Mas não comigo dentro da sala.
O amor não é um sentimento racional, ele acontece de forma que poucos sabem ou sentiram.   disse ficando levemente estressado.
Neste momento a nossa discussão acabou virando algo para atingirmos um ao outro e não sobre o conteúdo da aula, até envolvi meus problemas pessoais nisso tudo... Que garota insuportável!
Teve uma hora que ela mesma tentou dar um fim nela.
–Enfim, professor essa é minha opinião. – disse a garota, provavelmente sorrindo.
Não me aguentei, acabei virando para falando.
– Você não pode provar que não existe! – falei e acabei paralisando em surpresa.
Aqueles cabelos ruivos, os lábios vermelhos, a pele clara... Eu a conhecia.
A última coisa que encarei foram seus olhos, que eram lindamente amarelos. Agora eu tinha como delinear seus olhos.
Vitória.
Ela ficou sem reação quando me viu e corou levemente, só não entendi o porquê do reconhecimento em seus olhos.
Ela levantou o queixo em superioridade e falou:
Você também não! – a voz saindo tanto falhada quanto acusativa, mas alta o suficiente para que eu a escutasse.
Ficamos nos encarando durante algum tempo e eu interrompi nossa troca de olhares virando para a frente.
O que eu iria fazer convivendo com ela até o final do ano?
O meu destino estava me pregando uma peça, só podia ser.
                                                              ...
Assisti às outras aulas sem sequer olhar para o fundo da sala. Eu senti o olhar dela em minhas costas e fiquei tentado a olhar por cima de meu ombro, mas me controlei e continuei a olhar para o quadro.
Na hora do intervalo eu simplesmente sumi de sua vista, indo direto para a torre do relógio. Tinha uma escada por dentro que me permitia um pouco de paz dentro disto... E que me permitiria um tempo longe de Vitória.
Eu ainda não acreditava que ela estava em minha sala, que teria que vê-la cinco dias por semana e provavelmente nos fins de semana, pois Claudia morava em minha rua. Minha vida definitivamente havia virado de cabeça para baixo.
Bateu e eu voltei vagarosamente para a sala, queria dar um tempo para que Vitória entrasse antes de mim e eu não precisasse cruzar com ela agora. E acabou sendo um plano que teve sucesso.
Assisti as duas últimas aulas e, quando bateu, fui o primeiro a sair da sala. Liguei meu Ipod e começou a tocar Frozen do Within Temptation.
Estava caminhando tranquilamente até notar alguém caminhando ao meu lado.
Tirei os fones e olhei para o lado. Era Vitória.
– Ah... Olá? – disse franzindo a testa.
– Olá. – ela falou, dando um enorme sorriso.
Aquele sorriso me fascinou, mas mantive meu rosto neutro.
Por acaso quer fazer mais algum comentário sobre o assunto da aula de hoje? – perguntei irônico.
Ela faz uma careta rápida, mas logo sorri novamente.
– Na verdade não é isso. É que eu queria lhe agradecer.
Eu parei. Ela sabia que fui eu? Ou Claudia comentou algo? Terei que sondar.
– Agradecer o que? – perguntei fingindo confusão.
Ela para um pouco mais na frente e vira de lado para mim. Ela para de sorrir e os olhos dela se abrem um pouco mais, ficando mais brilhantes.
 Ela faz um biquinho e diz:
 – Ah, pela história do lago, sei que foi você Bernardo. – E volta a sorrir de lado.
Eu arregalei os olhos levemente.
– De onde você tirou essa certeza toda? – perguntei. – E outra, como sabe meu nome?
–Claudia. – disse simplesmente e deu uma pequena risada.
Suspirei cedendo.
– Claudia irá ficar me devendo depois dessa.
Ela começou a rir.
– Eu sabia que era você, e obrigada novamente. – ela ficou com um sorriso radiante no rosto.
O sorriso dela brilhava mais do que as estrelas em seus melhores dias...
Situe-se Bernardo, repreendi-me mentalmente.
– Era o melhor que eu poderia fazer. – disse dando de ombros e voltando a caminhar. – Simplesmente era o certo.
 – Entendo. Só não digo que faria o mesmo por que, bom, eu iria acabar morrendo junto com a pessoa. – e riu, provavelmente pensando na cena,
Ela era tão extrovertida, legal... Acabei sentindo um sorriso se espalhar pelo meu rosto.
– Você é mais legal quando não está discutindo, sabia? – deixei escapar.
– Sabia sim. – ela fez uma careta, balançou a cabeça negativamente como se tivesse afastando um pensamento e voltou a sorrir. – Você também não é nada chato.
– Quando não está discutindo – completou rapidamente.
– Só não espalhe isso por aí, tenho uma reputação a manter. – falei brincando.
O que estava acontecendo comigo?
Ela riu um pouco.
– Bem, eu ainda não tenho a quem contar. – disse pensativa. – E penso que todas as pessoas por aqui tenham uma.
Fiquei sério pela mudança de tema.
– Sempre temos uma reputação, as pessoas têm um grande talento de julgar ao próximo por aqui. – disse a ela.
– Acho que logo, logo terei a minha. – ela riu. – E não será das melhores.
– Provavelmente, ainda mais sendo sobrinha de Claudia. – comentei.
– Com certeza. – e sorri novamente.
Rezo aos céus para que Desdém nunca tire este sorriso dela.
– Ei, não deveria ser tão sério, é mais bonito sorrindo.
Passei a mão pelo cabelo constrangido.
– Ah... Obrigado? – falei, provavelmente estando vermelho.
O que esta garota está fazendo comigo?
– É o que se diz quando alguém faz um elogio. – disse sorrindo. – Não se acha bonito?
Antes que eu respondesse, ela falou:
– Não se subestime.
Respirei fundo.
– Digamos apenas que eu nunca pensei nisso.
– Ah, sim... – ela balançou a cabeça positivamente. – Reconheci você pelos olhos. – falou ela mudando de tema novamente.
Franzi a testa surpreso.
– Pelos olhos? Mas como se você estava desacordada quando lhe tirei do lago?
– Não sei, eu só me lembro dos seus olhos. Talvez eu tenha acordado em algum momento. – disse pensativa. – Mas de qualquer forma é a única coisa que me lembro e, bom, eu fiquei de...
Vitória parou de falar.
Eu olhei para o lugar onde ela encarava e vi um garoto, ele deveria medir 1,87m, tinha cabelos cor chocolate e olhos acinzentados.
Não sei o que me deu exatamente enquanto ela abria a boca em surpresa ainda olhando para o garoto e saia correndo, deixando seus cadernos caírem no chão e se abrirem em uma página onde estavam desenhados olhos azuis... Os olhos que encaro todo dia quando olho no espelho.
Algo em minha mente me disse para sair dali, e foi o que eu fiz, sem dar uma única olhada para trás.

“Quando o destino junta duas pessoas, não há nada que as separe”

(*http://www.visuartbrasil.com.br/imagens/visuartbrasil.com.br/produtos/Linha%20Vip/Garrafas_academia_-_500ml_e_600ml.jpg)

Por:  Djessica Millage

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