Mais um dia como todos os outros, eu pensei desanimado. Eu ainda estava chateado com o que aconteceu na noite anterior.
Queria entender a razão de Jorge me ignorar daquela forma.
Fui para a cozinha procurar algo para comer. Não tenho ideia de
que horas eram, mas devia passar do meio dia, pois a fome era intensa. Não
encontrei nada, então me lembrei do que Jorge havia dito em frente à porta do
quarto. Abri o armário e vi o dinheiro que ele tinha deixado.
Pensei em
sair para comprar algo, mas a lembrança daquelas pessoas me olhando com piedade
me fez desistir. Peguei um copo, enchi de água e tomei. Aquilo gelou meu
estômago. Repeti a dose umas duas vezes e fui para a sala.
Joguei-me no sofá e desejei que Jorge chegasse logo com comida.
Liguei a televisão, vi que falava algo sobre uma garota que morreu ontem no
bosque perto de casa, então entendi o que eram os gritos que ouvi. Também vi
que havia acontecido um acidente, e uma garota caiu no lago e quase se afogou,
mas por acaso alguém estava lá perto e a salvou. Nada é por acaso.
Ouvi passos do lado de fora, deduzi que era Jorge, o que me deixou
feliz.
Ele abriu a
porta e entrou. Jorge me olhou com cara de reprovação e mesmo sem entender
perguntei:
– Trouxe algo para comer?
– Não.
Soltei um palavrão involuntariamente.
Jorge se
aproximou de mim, me olhou com raiva e deu um tapa forte em meu rosto, que na
mesma hora ardeu. Senti um calor subindo e tomando conta do meu corpo.
Começaram a descer lágrimas.
– Moleque insolente, eu
trabalho, me esforço para manter essa casa. Eu deixei dinheiro, você só tinha
que sair para comprar comida, isso é mínimo que você deveria fazer. E dar uma
ajeitada nessa casa talvez.
Eu sabia que ele tinha razão. Jorge trabalhava duro, saia muito
cedo e não tinha hora para voltar. A casa estava de ponta cabeça, suja e
abandonada, desde que nossos pais morreram, ela não foi limpa. Não me custaria
mesmo arrumar.
Mesmo
entendendo não consegui controlar a raiva, eu estufei o peito, e pensei em por
pra fora tudo que eu estava sentindo sobre ele me ignorar, mas ao invés disso
eu virei e sai. Bati a porta com tanta força que senti o tremor das paredes.
Fazia tempo que eu não saia para a rua.
Era noite, e as lagrimas em meus olhos deixavam as luzes dos
postes ofuscadas. Eu estava andando depressa e meio cambaleando. Não sabia para
onde eu iria, estava apenas seguindo meus instintos.
Eu havia me esquecido como o silencio das ruas noturnas de Desdém
era ensurdecedor.
Desdém... Eu não podia parar de pensar em como eu a detestava. Eu
não odiava apenas a cidade, eu me odiava também. Eu odiava o que tinha me
tornado depois de tudo que aconteceu. A cidade sempre foi amaldiçoada, mas eu
só me dei conta disso quando a desgraça me alcançou.
A melhor parte de mim morreu em Desdém, a
minha inocência. Toda aquela felicidade e inquietude que uma criança pode ter
eu perdi. Não tenho mais perspectivas. A cidade se alimenta dos sonhos e da
esperança de todos e tira o bem mais valioso de cada um.
E culpa é dos próprios moradores, se eles não alimentassem essa
cidade idiota, nada disso aconteceria. Enquanto pensava nisso, lágrimas de fogo
caiam e eu andava cada vez mais rápido.
Percebi que um pouco longe havia um obstáculo em minha frente.
Minha vista estava embaçada, sequei os olhos para tentar enxergar melhor.
Era uma pessoa. Senti um gelo na barriga, quanto tempo fazia que
eu não via alguém diferente de Jorge?
Eu ia atravessar rua quando ela falou comigo. Uma voz doce, mas de
garota com atitude.
– Está tudo bem com você? – ela disse tentando ver meu
rosto.
Eu respondi que sim. Na verdade a minha vontade era de ignora-la
ou responder grosseiramente, mas não pude. Quando eu levantei a cabeça para
olha-la, me deparei com uma beleza contrastante. Apesar de estar escuro eu podia ver os reflexos alaranjados dos
seus cabelos. Os olhos eram em um tom de verde intenso, e passavam uma ternura
e delicadeza. Eu não conhecia muitas garotas, mas nunca havia visto uma tão
linda quanto esta.
– Meu nome é Lutrícia Sena e
o seu?
– Dante Rodrigues – engoli
seco, pois sabia que ela me reconheceria por causa do sobrenome.
Percebi a reação da garota, mas ela, diferente de todos, não foi
inconveniente de comentar o assunto.
– Você não estuda? Nunca te
vi na escola.
– Não, eu parei.
Por um tempo fiquei olhando para os olhos dela. Senti um pouco de
vergonha pelo corte que eu havia feito no meu cabelo, passei a mão tentando
ajeitar.
– Corte legal, - ela disse
e sorriu. Eu não sabia o que dizer então retribui o sorriso.
– Não devia andar sozinha a
noite Lutrícia, e muito menos ficar por ai conversando com estranhos. – disse o
garoto que eu não conhecia. Eu não escutei ele chegar, provavelmente porque
estava hipnotizado com a beleza da moça.
– Esse é Dante Rodrigues,
acabamos de nos conhecer. – Lutrícia disse fazendo um gesto de apresentação. –
Dante, esse é Gabriel, – acenei com a cabeça.
– Como eu estava dizendo,
não é bom você ficar na rua à essas horas Lutricia, ainda mais depois de tudo
que aconteceu. – Gabriel disse me ignorando, ele parecia abalado, mas isso não
era motivo para me tratar daquela forma.
– Você tem razão, é melhor
eu ir. – ela disse se dirigindo a mim com uma expressão séria. – Eu sou
voluntária na Biblioteca Municipal, vou pra lá depois da aula, se você quiser
conversar pode me encontrar lá.
Eu assenti.
– Eu te acompanho até em
casa Lu. – ele falou com um tom de superioridade.
Lutrícia fez um gesto com a mão e se foi.
Me senti um pouco mal em deixar a garota ir embora com aquele
cara. Havia algo nele que eu não engolia. Pode parecer loucura, mas eu senti
ciúme. Apesar de não ter nada com Lutrícia, naquele momento toda a atenção dela
estava voltada a mim.
Lutricia era realmente muito bonita,e ela me lembrou Mary Jane.
Eu nunca gostei muito de ler, mas Jorge adorava HQ’s. Lembro me de
um dia, alguns anos atrás, Jorge me mostrou sua coleção de quadrinhos, entre
eles um chamado “Homem Aranha”. Folhei as páginas da revista quando me deparei
com uma linda garota, desenhada em traços sofisticados, com sombras e efeitos.
Os cabelos eram ruivos e os olhos claros, rosto delicado e curvas tentadoras.
Perguntei a Jorge quem era e ele respondeu com uma suspirada.
– Mary Jane. É linda não é?
– Sim, quero casar com ela – eu disse arregalando os olhos. Nós
dois começamos a rir. Em geral não tínhamos muitos momentos como aquele, nós
não compartilhávamos dos mesmos gostos.
Jorge sempre foi um ótimo exemplo, gostava de ler e estudar, nunca
deu trabalho para meus pais. Pensando nisto, imagino como deve ter sido
doloroso para ele abandonar os estudos, ele sempre sonhou em ir para a
faculdade.
Eu sempre fui rebelde e mimado, meus pais gastavam muito tempo
comigo, sempre eram chamados na escola por causa das minhas brigas e bagunças.
Isso deixava o Jorge com ciúme, por mais que ele não admitisse.
Fisicamente
nós nos parecemos muito, é impossível alguém falar que não somos irmãos. O
formato dos nossos rostos é praticamente igual, parecem ter sidos desenhados
com a régua, traços retos e agressivos. Os cabelos no mesmo tom, um castanho
escuro, que puxamos do nosso pai. O que nos diferenciava eram os olhos, os meus eram da minha mãe, e
os do Jorge pareciam mais com os do papai.
Eu estava
tão perdido em pensamentos que nem percebi onde estava, eu já tinha andado um
tanto e chegado à entrada do bosque, resolvi
entrar para passar o tempo já que não pretendia voltar para casa. .
Fui
entrando apoiando-me nos troncos para não cair. Eu estava com medo, mas apesar
de estar escuro, a luz da lua iluminava o contorno das árvores e caminhos, o
que me confortava um pouco.
Depois de caminhar certo tempo cheguei a um lugar que
conhecia bem, era uma área bem mais aberta, onde o papai sempre nos levava para
brincar quando crianças. Logo esbarrei em alguma coisa. Estava bem à minha
frente e bateu na minha barriga. Passei as mãos e logo reconheci. Era uma
balança feita de pneu, certamente a mesma que costumávamos balançar. Lembro
perfeitamente da cena, eu sentado na balança, ainda era bem pequeno, meus pés
nem alcançavam o chão, papai me empurrando e Jorge sentado no chão. Eu me
divertia muito, repetia incansavelmente:
– Mais forte papai, mais
forte!
E eu fingia que estava voando, sentia-me um super herói.
Jorge não parecia se divertir muito, ele ficava jogando pedrinhas no lago à sua
frente. O lago... Aquele lago azul claro, que era reflexo do céu nas minhas
lembranças, nem parecia o mesmo de agora. Tão negro e sombrio, com exceção da
luz que surgia bem no centro dele. A lua refletia no lago, ela estava
perfeitamente redonda, e dava a impressão de que estava encostando na água e
derretendo.
Me aproximei um pouco e admirei a imagem, que por alguns
instantes me hipnotizou.
Ouvi alguns barulhos vindo do meio das árvores, me assustei
e quase desequilibrei. Foi por pouco, tão pouco que até ouvi o barulho de
algumas pedrinhas caindo, certamente era uma daquelas que Jorge costumava
atirar ali.
Lembrei-me do que havia acontecido no bosque no dia
anterior, e corri para me esconder. Escolhi uma árvore bem larga, uma das mais
próximas dali. Ouvi o barulho de folhas amassando se aproximar, e do meio das
árvores saiu Jorge. Ele caminhou até a margem do lago, ficou um tempo olhando a
luz da lua, assim como eu tinha feito antes e se sentou. Onde eu estava
escondido, dava para vê-lo exatamente de perfil. Os contornos de seu rosto
estavam iluminados, me esforcei um pouco para ter certeza, mas ele parecia
estar chorando. Ele pegou algumas pedras e começou a atirar. Algumas quase que
sem força alguma, outras ele enchia o peito e parecia se esforçar para atirar o
mais longe possível.
Eu não sabia o que fazer, não queria falar com ele naquele
momento, até porque comecei a me sentir culpado por termos discutido. Mas
também eu não podia ir embora, pois Jorge escutaria e viria atrás de mim. A
única opção era esperar até que ele fosse, e então ir embora logo depois, assim
quando eu chegasse em casa ele já estaria dormindo e eu não precisaria
enfrentá-lo.
Depois de um tempo a posição foi ficando cada vez mais
desconfortável, e eu estava me esforçando para não me mexer muito. Jorge já
tinha parado de jogar pedras, agora ele estava sentado, abraçando as pernas e
com a cabeça abaixada. Logo depois ele deitou no chão com os braços atrás da
cabeça e ficou imóvel. Ele dormiu.
Eu não contava com isso, mas já que ele havia adormecido,
resolvi ir embora. Fui andando com todo o cuidado para não fazer barulho e
acordá-lo.
Quando abri a porta tive uma surpresa, a casa estava toda
revirada, móveis tombados, coisas espalhadas e quebradas. Atentei-me ao vaso de
louça que ficava encima da mesinha perto da televisão, estava estilhaçado, sem
possibilidade mínima de recuperação. Era o vaso favorito da mamãe, ele abrigava
umas florzinhas, eu não sei o nome, mas eram pequenas e rosas, e cresciam bem
próximas ao caule. Agora elas estavam esparramadas junto a terra escura no
chão.
O que havia acontecido? Será que Jorge tinha perdido o
controle quando sai, e fez toda aquela bagunça, ou será que outra pessoa havia
entrado em casa, já que a porta estava destrancada.
Eu não iria arrumar tudo aquilo naquela hora, então fui
tomar um banho quente antes de dormir. Meu corpo estava dolorido por ter ficado
tanto tempo na mesma posição, e eu estava com a cabeça a mil. Aquela discussão
com Jorge, a garota que eu havia conhecido, as lembranças... Tudo aquilo
estava borbulhando na minha cabeça. Entrei embaixo do chuveiro, liguei a água
quente e deixei escorrer. Quando me senti relaxado, sai do banho, subi para meu
quarto e me joguei em minha cama.
Por: Luna Gabriella
Dante.. Outra paixão secreta..
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