sexta-feira, 5 de abril de 2013

14 - Dante - Mary Jane

Mais um dia como todos os outros, eu pensei desanimado.  Eu ainda estava chateado com o que aconteceu na noite anterior. Queria entender a razão de Jorge me ignorar daquela forma.
Fui para a cozinha procurar algo para comer. Não tenho ideia de que horas eram, mas devia passar do meio dia, pois a fome era intensa. Não encontrei nada, então me lembrei do que Jorge havia dito em frente à porta do quarto. Abri o armário e vi o dinheiro que ele tinha deixado.
Pensei em sair para comprar algo, mas a lembrança daquelas pessoas me olhando com piedade me fez desistir. Peguei um copo, enchi de água e tomei. Aquilo gelou meu estômago. Repeti a dose umas duas vezes e fui para a sala.
Joguei-me no sofá e desejei que Jorge chegasse logo com comida. Liguei a televisão, vi que falava algo sobre uma garota que morreu ontem no bosque perto de casa, então entendi o que eram os gritos que ouvi. Também vi que havia acontecido um acidente, e uma garota caiu no lago e quase se afogou, mas por acaso alguém estava lá perto e a salvou.  Nada é por acaso.


Ouvi passos do lado de fora, deduzi que era Jorge, o que me deixou feliz.
Ele abriu a porta e entrou. Jorge me olhou com cara de reprovação e mesmo sem entender perguntei:
Trouxe algo para comer?
Não.
Soltei um palavrão involuntariamente.
Jorge se aproximou de mim, me olhou com raiva e deu um tapa forte em meu rosto, que na mesma hora ardeu. Senti um calor subindo e tomando conta do meu corpo. Começaram a descer lágrimas.
Moleque insolente, eu trabalho, me esforço para manter essa casa. Eu deixei dinheiro, você só tinha que sair para comprar comida, isso é mínimo que você deveria fazer. E dar uma ajeitada nessa casa talvez.
Eu sabia que ele tinha razão. Jorge trabalhava duro, saia muito cedo e não tinha hora para voltar. A casa estava de ponta cabeça, suja e abandonada, desde que nossos pais morreram, ela não foi limpa. Não me custaria mesmo arrumar.
Mesmo entendendo não consegui controlar a raiva, eu estufei o peito, e pensei em por pra fora tudo que eu estava sentindo sobre ele me ignorar, mas ao invés disso eu virei e sai. Bati a porta com tanta força que senti o tremor das paredes.
Fazia tempo que eu não saia para a rua.
Era noite, e as lagrimas em meus olhos deixavam as luzes dos postes ofuscadas. Eu estava andando depressa e meio cambaleando. Não sabia para onde eu iria, estava apenas seguindo meus instintos.
Eu havia me esquecido como o silencio das ruas noturnas de Desdém era ensurdecedor.
Desdém... Eu não podia parar de pensar em como eu a detestava. Eu não odiava apenas a cidade, eu me odiava também. Eu odiava o que tinha me tornado depois de tudo que aconteceu. A cidade sempre foi amaldiçoada, mas eu só me dei conta disso quando a desgraça me alcançou.
A melhor parte de mim morreu em Desdém, a minha inocência. Toda aquela felicidade e inquietude que uma criança pode ter eu perdi. Não tenho mais perspectivas. A cidade se alimenta dos sonhos e da esperança de todos e tira o bem mais valioso de cada um.
E culpa é dos próprios moradores, se eles não alimentassem essa cidade idiota, nada disso aconteceria. Enquanto pensava nisso, lágrimas de fogo caiam e eu andava cada vez mais rápido.
Percebi que um pouco longe havia um obstáculo em minha frente. Minha vista estava embaçada, sequei os olhos para tentar enxergar melhor.
Era uma pessoa. Senti um gelo na barriga, quanto tempo fazia que eu não via alguém diferente de Jorge?
Eu ia atravessar rua quando ela falou comigo. Uma voz doce, mas de garota com atitude.
Está tudo bem com você? ela disse tentando ver meu rosto.
Eu respondi que sim. Na verdade a minha vontade era de ignora-la ou responder grosseiramente, mas não pude. Quando eu levantei a cabeça para olha-la, me deparei com uma beleza contrastante. Apesar de estar escuro eu podia ver os reflexos alaranjados dos seus cabelos. Os olhos eram em um tom de verde intenso, e passavam uma ternura e delicadeza. Eu não conhecia muitas garotas, mas nunca havia visto uma tão linda quanto esta. 
Meu nome é Lutrícia Sena e o seu?
Dante Rodrigues – engoli seco, pois sabia que ela me reconheceria por causa do sobrenome.
Percebi a reação da garota, mas ela, diferente de todos, não foi inconveniente de comentar o assunto.
Você não estuda? Nunca te vi na escola.
Não, eu parei.
Por um tempo fiquei olhando para os olhos dela. Senti um pouco de vergonha pelo corte que eu havia feito no meu cabelo, passei a mão tentando ajeitar.
Corte legal, - ela disse e sorriu. Eu não sabia o que dizer então retribui o sorriso.
Não devia andar sozinha a noite Lutrícia, e muito menos ficar por ai conversando com estranhos. – disse o garoto que eu não conhecia. Eu não escutei ele chegar, provavelmente porque estava hipnotizado com a beleza da moça.
Esse é Dante Rodrigues, acabamos de nos conhecer. – Lutrícia disse fazendo um gesto de apresentação. – Dante, esse é Gabriel, acenei com a cabeça.
Como eu estava dizendo, não é bom você ficar na rua à essas horas Lutricia, ainda mais depois de tudo que aconteceu. – Gabriel disse me ignorando, ele parecia abalado, mas isso não era motivo para me tratar daquela forma.
Você tem razão, é melhor eu ir. – ela disse se dirigindo a mim com uma expressão séria. – Eu sou voluntária na Biblioteca Municipal, vou pra lá depois da aula, se você quiser conversar pode me encontrar lá.
Eu assenti.
Eu te acompanho até em casa Lu. – ele falou com um tom de superioridade.
Lutrícia fez um gesto com a mão e se foi.
Me senti um pouco mal em deixar a garota ir embora com aquele cara. Havia algo nele que eu não engolia. Pode parecer loucura, mas eu senti ciúme. Apesar de não ter nada com Lutrícia, naquele momento toda a atenção dela estava voltada a mim.
Lutricia era realmente muito bonita,e ela me lembrou Mary Jane.
Eu nunca gostei muito de ler, mas Jorge adorava HQ’s. Lembro me de um dia, alguns anos atrás, Jorge me mostrou sua coleção de quadrinhos, entre eles um chamado “Homem Aranha”. Folhei as páginas da revista quando me deparei com uma linda garota, desenhada em traços sofisticados, com sombras e efeitos. Os cabelos eram ruivos e os olhos claros, rosto delicado e curvas tentadoras. Perguntei a Jorge quem era e ele respondeu com uma suspirada.
Mary Jane. É linda não é?
– Sim, quero casar com ela – eu disse arregalando os olhos. Nós dois começamos a rir. Em geral não tínhamos muitos momentos como aquele, nós não compartilhávamos dos mesmos gostos.
Jorge sempre foi um ótimo exemplo, gostava de ler e estudar, nunca deu trabalho para meus pais. Pensando nisto, imagino como deve ter sido doloroso para ele abandonar os estudos, ele sempre sonhou em ir para a faculdade.
Eu sempre fui rebelde e mimado, meus pais gastavam muito tempo comigo, sempre eram chamados na escola por causa das minhas brigas e bagunças. Isso deixava o Jorge com ciúme, por mais que ele não admitisse.
Fisicamente nós nos parecemos muito, é impossível alguém falar que não somos irmãos. O formato dos nossos rostos é praticamente igual, parecem ter sidos desenhados com a régua, traços retos e agressivos. Os cabelos no mesmo tom, um castanho escuro, que puxamos do nosso pai.  O que nos diferenciava eram os olhos, os meus eram da minha mãe, e os do Jorge pareciam mais com os do papai.
Eu estava tão perdido em pensamentos que nem percebi onde estava, eu já tinha andado um tanto e chegado à entrada do bosque, resolvi entrar para passar o tempo já que não pretendia voltar para casa. .
Fui entrando apoiando-me nos troncos para não cair. Eu estava com medo, mas apesar de estar escuro, a luz da lua iluminava o contorno das árvores e caminhos, o que me confortava um pouco.
Depois de caminhar certo tempo cheguei a um lugar que conhecia bem, era uma área bem mais aberta, onde o papai sempre nos levava para brincar quando crianças. Logo esbarrei em alguma coisa. Estava bem à minha frente e bateu na minha barriga. Passei as mãos e logo reconheci. Era uma balança feita de pneu, certamente a mesma que costumávamos balançar. Lembro perfeitamente da cena, eu sentado na balança, ainda era bem pequeno, meus pés nem alcançavam o chão, papai me empurrando e Jorge sentado no chão. Eu me divertia muito, repetia incansavelmente:
Mais forte papai, mais forte!
E eu fingia que estava voando, sentia-me um super herói. Jorge não parecia se divertir muito, ele ficava jogando pedrinhas no lago à sua frente. O lago... Aquele lago azul claro, que era reflexo do céu nas minhas lembranças, nem parecia o mesmo de agora. Tão negro e sombrio, com exceção da luz que surgia bem no centro dele. A lua refletia no lago, ela estava perfeitamente redonda, e dava a impressão de que estava encostando na água e derretendo. 
Me aproximei um pouco e admirei a imagem, que por alguns instantes me hipnotizou.
Ouvi alguns barulhos vindo do meio das árvores, me assustei e quase desequilibrei. Foi por pouco, tão pouco que até ouvi o barulho de algumas pedrinhas caindo, certamente era uma daquelas que Jorge costumava atirar ali.
Lembrei-me do que havia acontecido no bosque no dia anterior, e corri para me esconder. Escolhi uma árvore bem larga, uma das mais próximas dali. Ouvi o barulho de folhas amassando se aproximar, e do meio das árvores saiu Jorge. Ele caminhou até a margem do lago, ficou um tempo olhando a luz da lua, assim como eu tinha feito antes e se sentou. Onde eu estava escondido, dava para vê-lo exatamente de perfil. Os contornos de seu rosto estavam iluminados, me esforcei um pouco para ter certeza, mas ele parecia estar chorando. Ele pegou algumas pedras e começou a atirar. Algumas quase que sem força alguma, outras ele enchia o peito e parecia se esforçar para atirar o mais longe possível. 
Eu não sabia o que fazer, não queria falar com ele naquele momento, até porque comecei a me sentir culpado por termos discutido. Mas também eu não podia ir embora, pois Jorge escutaria e viria atrás de mim. A única opção era esperar até que ele fosse, e então ir embora logo depois, assim quando eu chegasse em casa ele já estaria dormindo e eu não precisaria enfrentá-lo.
Depois de um tempo a posição foi ficando cada vez mais desconfortável, e eu estava me esforçando para não me mexer muito. Jorge já tinha parado de jogar pedras, agora ele estava sentado, abraçando as pernas e com a cabeça abaixada. Logo depois ele deitou no chão com os braços atrás da cabeça e ficou imóvel. Ele dormiu.
Eu não contava com isso, mas já que ele havia adormecido, resolvi ir embora. Fui andando com todo o cuidado para não fazer barulho e acordá-lo.

Quando abri a porta tive uma surpresa, a casa estava toda revirada, móveis tombados, coisas espalhadas e quebradas. Atentei-me ao vaso de louça que ficava encima da mesinha perto da televisão, estava estilhaçado, sem possibilidade mínima de recuperação. Era o vaso favorito da mamãe, ele abrigava umas florzinhas, eu não sei o nome, mas eram pequenas e rosas, e cresciam bem próximas ao caule. Agora elas estavam esparramadas junto a terra escura no chão.
O que havia acontecido? Será que Jorge tinha perdido o controle quando sai, e fez toda aquela bagunça, ou será que outra pessoa havia entrado em casa, já que a porta estava destrancada.

Eu não iria arrumar tudo aquilo naquela hora, então fui tomar um banho quente antes de dormir. Meu corpo estava dolorido por ter ficado tanto tempo na mesma posição, e eu estava com a cabeça a mil. Aquela discussão com Jorge, a garota que eu havia conhecido, as lembranças... Tudo  aquilo estava borbulhando na minha cabeça. Entrei embaixo do chuveiro, liguei a água quente e deixei escorrer. Quando me senti relaxado, sai do banho, subi para meu quarto e me joguei em minha cama.


Por: Luna Gabriella

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