Meu peito
queimava, incinerava-se junto ao velho ônibus.
Encarcerado, eu
esmurrava em vão as paredes da minha cela. Meu punho sangrava, mas a dor não me
era sensível. Doía em meu peito algo maior.
Se eu estivesse
morto como ela, a dor não me seria sensível, mas um dos guardas me tomou tudo
quanto pudesse me ferir. Estava preso não somente ali, estava preso em minha
vida.
– Você é um
guerreiro – ela me disse uma vez. – Você é como o principezinho daquele livro
que leu para mim. Ele era loiro, claro, e você não. Mas isso não importa. Você
para mim é o pequeno príncipe.
Na história o
principezinho morre, o que me desconsolava, pois quem morrera fora ela.
Esmurrei ainda
mais a parede, e com os punhos sangrando, não queria parar.
Mas eu fui
obrigado a parar.
Meus gemidos me
interromperam, meu arfar intenso me interrompeu, o frio me interrompeu.
Era inútil
descontar uma dor numa parede dura e fria, era inútil, pois além de fato,
estava consumado. A escuridão lá longe me dizia a verdade, a fumaça por sobre
as árvores me mostrava a verdade. E o cruel silêncio, era ele quem sussurrava
aos meus ouvidos a macabra verdade.
Eu abafava tudo
isso com as lembranças que eu tinha. Povoava minha mente as lembranças da
criança que ela era. Gabriele. Vivia agora somente em minha memória.
Tiago chorava.
Eu me lembrava bem daquele dia, daquele momento em que o encontrei com lágrimas
nos olhos, retendo-as com vergonha, mas em seu interior clamando por ajuda.
Ele chorava,
numa das tardes mais nubladas em Desdém. Sentado cabisbaixo no estacionamento
do único hospital da cidade. Tinha os braços cruzados por sobre o peito, e os
pés estirados diante dele. Sentava-se por sobre uma baliza amarela numa das
vagas.
O dia foi
especialmente escolhido para o nascimento de uma garota que nem mesmo um nome
possuía.
Em Desdém,
adolescentes grávidas nunca foram algo novo, mas quando a filha do presidente
da câmara de vereadores da cidade, anunciou para a família, beirando os 5
meses, que possuía uma criança em seu ventre, todos os sorrisos verteram-se em
julgo.
Enquanto chovia,
a jovem corria pelas ruas frias de Desdém. O pai a ferira, não apenas no coração.
Sua face latejava, podia ainda sentir a mão do pai em contato com a pele.
Passou ela
diante da Igreja Católica da cidade, queria poder adentrar e ali se afogar em
seu choro, mas as portas estavam fechadas. Apenas parou e buscou olhar para
algo que a ajudasse a esquecer de tal dor. Mas aquele templo em nada lhe foi
útil, senão para sentir as gotas da chuva a descer por seu corpo.
Ela chorava em
meio à chuva, mas suas lágrimas se misturavam às gotas de chuva, de forma que
não se via se ela chorava realmente.
Seu ventre ardia
como fogo, mas a dor era aplacada pela raiva e pelo medo. Estava sozinha? Não
voltaria jamais para casa, mesmo que o pai a aceitasse. Mas não tinha mais para
onde ir, senão para onde estava Tiago.
Não sabia onde o
encontrar, por isso vagava para lugar algum.
A barriga
crescia, arrependia-se de ter escondido isso por tanto tempo. Agora que todos
sabiam, logo que Tiago ouviu de seus lábios a verdade, ela se arrependia ainda
mais.
Estava magra, a
criança talvez mal formada. Seu segredo poderia custar a vida de um alguém
inocente.
Sonhos
destruídos. Como prenuncio do fim ela possuía ânsias de vômitos.
A todo o momento
imagens de sua infância lhe vinham à mente. Que destino se formava para ela?
Devia abandonar a criança que crescia dentro dela? Já não teve na infância
tribulações por demais? Se não desistisse, o que faria dali em diante?
Mas algo
visivelmente presente em toda Desdém, não é só a tristeza que o ar carrega, mas
também o julgo das pessoas, o olhar de julgo, os comentários que rolam de
esquina em esquina. O desprezo.
Tanta amargura
Tiago escondeu. Tinha medo, tanto quanto Heloisa. Ela foi negada pela família,
e ele, logo que seus pais soubessem, o despojaria. Ambos com meros 15 anos.
Duas vidas destruídas logo cedo.
Bastava aos dois
apenas que esperassem os boatos surtirem, e os olhares tortos serem lançados
por sobre os dois.
Por dois meses
tudo ficou em silêncio. Juntos se instalaram num pequeno apartamento próximo
aos bosques da cidade. Ele abandonou a escola, e começou a trabalhar
braçalmente numa das olarias da cidade. Via-se em seu rosto a dor, mas ninguém
sabia ainda o que a causava.
Heloisa
prendeu-se na pequena casa. Não ia mais a escola, mas não trabalhava. Sabia-se
que morava ela com um jovem, mas ninguém sabia os detalhes. Seus pais não
falavam mais sobre ela, e restava apenas aos vizinhos que especulassem.
Horrendos
comentários surgiram de inúmeros lábios, nenhum que dissesse de fato a verdade,
nenhum que os bendissesse.
Aos sete meses
não foi mais possível ocultar o que era fato.
Consola, mulher
que faz jus ao seu nome, há muito fora a mãe de Heloisa, mas desde o momento
que o pai a negou, Consola se viu perdida, dividida entre ambos.
Nada fere mais o
coração de uma mãe, que ver a filha partindo, com um filho sendo gerado dentro
de si, numa tarde fria e chuvosa. Via da janela os cabelos loiros da filha se
tornando negros enquanto a chuva os molhava no dia em que partira. Isso a
feria.
Conteve então
ela a dor em seu peito por 2 meses, e deixou que a mesma extravagasse-se logo
após, quando seu amor gritou mais alto. Não podia deixar a garota que tinha no
rosto os mesmos traços que ela a mercê do mundo.
Derrubou seu
cárcere quando encontrou pelas ruas, caminhando tão soturno, quanto o dia que
se fazia noite, o jovem que apenas vivia, por amor à garota que o aguardava num
ambiente que jamais seria chamado de lar.
Ressentida,
hesitou antes de gritá-lo enquanto passava no outro lado da rua. Talvez nem
mesmo soubesse o seu nome se seu marido não tivesse feito questão de repeti-lo
toda noite, numa conversa que logo arrancava lágrimas de Consola.
Tiago logo sumiu
de vista, mas sabia ela que ele não andava em direção ao lar, tampouco para o
trabalho. Descobriria ela que ele ia mais uma vez chorar sozinho em meio às
árvores que enchiam um bosque que ele mesmo nomeara como O Bosque da Solidão.
Então ela o
ignorou, ignorou a ânsia de falar com ele, mas não conseguiu domesticar a
vontade de ver a filha.
Apenas com o
pensamento de que valeria a pena, ela chegou diante da porta que separava-a da
filha, e sem nem mesmo bater, girou a maçaneta na esperança de encontrar a
porta destrancada.
E quando a porta
acinzentada se abriu diante dela, antes mesmo de ver a filha, destruída, seus
olhos se molharam.
Ela parou antes
de abrir a porta toda. Viu a filha deitada por sobre um sofá, uma televisão
velha estava ligada, mas não reproduzia som algum enquanto o ícone que
representava mudo decorava a imagem
do telejornal das 12. Havia um ventilador ligado zunindo enquanto soprava por
sobre a menina.
Consola fechou
os olhos. Cada detalhe daquela casa a fazia chorar. Só de pensar que a filha vivia
ali e não junto dela, o coração sangrava.
– Quem está ai?
– Heloisa perguntou. Sua mãe chorava de olhos fechados, então deu um passo para
trás saindo de seu campo de visão. Tinha medo de abrir os olhos e encontrar a
filha diante dela. – Tiago? – sua voz veio ainda de longe.
Pensou em
voltar, mas se voltasse seu coração se partiria ainda mais.
– Sou eu, –
grunhiu. Entre um suspiro e um gemido… seu coração, ela não sabia onde estava.
– Quem? –
Heloisa num salto se pôs de pé, não acreditando no que ouvia. Repetia para si
enquanto caminhava na direção da porta, que só podia ser loucura. Mas quando
seus olhos pousaram na echarpe verde que a mãe usava sempre que ia ao mercado
nos dias nublados.
Manteve-se
parada há poucos passos da porta, o rosto da mãe se ocultava, mas o seu ardia,
era como se a dor que o pai lhe causara houvesse voltado, e a mãe estivesse ali
especialmente para fazer o que não fizera da última vez. Consolá-la.
Então logo o
espaço que havia entre as duas se desfez. Ao abrir a porta e ver a mãe de olhos
fechados, o rosto molhado, tirou a mão que descansava pousada por sobre a
barriga.
Consola só abriu
os olhos quando foi envolta pela filha, de pronto a retribuir seu abraço.
Mas a mesma
felicidade que ambas expressaram, não foi a mesma que quando voltaram da
primeira consulta médica de Heloisa.
Tais resultados
causaram medo. A criança estava mal posicionada, o cordão umbilical envolvia o
pescoço da criança, correndo o risco de enforcá-la.
Era uma menina,
mas Heloisa nem Consola ou mesmo Tiago puderam felicitar-se com isso.
…
Foi quando tal
noticia veio a ser dada a Tiago que eu me fiz útil em sua história. Não o via
desde seu aniversário, pouco tempo antes de ele descobrir a filha que viria a
ter.
Ele corria em
direção à minha casa, era tarde, o sol já havia se posto, mas ele ignorava
isso. Ele adentrou no quintal da casa, e logo o deixando adentrou no bosque que
se iniciava logo após.
Eu vi seus olhos
fixos no vazio, como que evitando ver tudo ao seu redor. O mundo desabava por
sobre ele, era obvio, não só pelos seus olhos molhados, mas também pelos seus
punhos cerrados, seus passos firmes, e seu agitar de cabeça. Algo intenso o
incomodava.
Eu estava como
sempre, sozinho em casa, as portas fechadas, somente as janelas abertas. Meus
pais haviam se mudado há menos de 4 meses, deixando-me sozinho, com uma pequena
pensão mensal.
Eu vivia ainda
com minha dor, mas vi que naquele momento, deveria engoli-la por maior que ela
fosse para mim, de forma que pudesse ajudar quem se angustiava ainda mais que
eu.
Num salto desci
as escadas e peguei as chaves por sobre o armário da cozinha. Abri rapidamente
as portas dos fundos, e correndo busquei alcançar Tiago.
Ele saltava a
cerca quando gritei seu nome e ele se virou. Vi que ele tentava conter as
lágrimas nos olhos, e corria para o bosque no anseio de ficar só e permitir que
as lágrimas corressem.
Ele hesitou
antes de se voltar para mim. Talvez esperava que eu não estivesse ali, ou que o
chamado que ouvira, não era nada além de um eco perdido em sua mente.
– Você está bem?
– Perguntei ainda longe, mas já perto o suficiente para não gritar. Minha calça
enchia-se de espinhos que se soltavam da vegetação rasteira, mas eu ignorei.
– Sim, – ele
respondeu sem se virar para mim. – Só queria ficar só.
– Se eu puder
ajudar… – esbocei uma sugestão, mas logo me calei, ele afirmava que estava bem,
e em parte, eu compreendia seu desejo de ficar só. Solidão, é o que qualquer um
deseja quando um problema o assola.
– Estou bem –
ele repetiu, como que frisando, não rispidamente, mas educadamente, de forma
que me senti culpado por sua tristeza.
–Tiago? Eu… –
Não sei de onde tirei as seguintes falas, só me lembro de ter dito. – Sei que a
gente mal se conhece, sei também que não estás bem. Eu e a cidade inteira
compartilhamos a ciência do seu sofrimento. – Quando me dei conta do
comentário, tentei remenda-lo. – Não que isso seja ruim… Sei que você se
esforça, e de longe vejo você chorar. As outras pessoas podem se fingir de
cegas, mas eu não, eu o vejo. De tudo eu só quero ajudar. Não sei como mas…
– Devo escolher
uma – ele logo confessou, não demonstrava a comoção que eu esperava depois da
minha fala, mas vi em seus olhos como ele realmente estava. – Heloísa ou minha
filha. – Entre suas falas ele escondia um soluço. De repente, vi que em seus
olhos as lágrimas não mais se continham, e que de seus lábios saía em verbos a
pior notícia que ele recebera. Mesmo eu não estava esperando o que ele dizia. –
Heloísa está morrendo, – ele disse num gemido. Parecia querer gritar, mas tinha
medo e vergonha. – Não posso perdê-las, nenhuma. Se a criança continuar dentro
dela, durante o parto Heloísa morre. Vão matar minha criança.
Não me segurei
mais, me aproximei de Tiago, que ainda de costas pra mim, me envolveu num
abraço logo que pus minha mão sobre seu ombro. Ele estava sozinho, era essa sua
situação. Todos na cidade sabiam de sua história, mas nenhum deles se dispunha
para ajuda-lo. Era a triste realidade de Desdém. Para falar, milhares se levantavam,
mas quando precisam estender uma mão, todos se acomodam em seus lares
aparentemente felizes, e se fecham cuidando apenas da própria vida, um
contrassenso, uma lástima.
Eu odiava
Desdém, e podia prever que Tiago também.
Mas eu precisava
dizer algo pra ele, eu tinha que consolá-lo de alguma forma. Eu me moía por
isso, estava ali para ajuda-lo, mas de todas as milhares de palavras, nenhuma
me passava pela mente para que eu pudesse amenizar aquela dor. Era agonizante,
eu queria sussurrar que ficaria tudo bem, mas sabia no fundo que era mentira, e
eu não queria mentir.
– Eu vou te
ajudar. Confia em mim? – ele aquiesceu com alguns grunhidos, sua mão preocupada
me apertava forte. Desfiz o abraço e o coloquei diante de mim, de forma que ele
me fitasse. Mesmo querendo esconder aquelas lágrimas ele me encarou, fungava
discretamente e tinha os olhos vermelhos. – Olha pra mim, – pedi quando desfiz
o abraço. – Eu vou ajudar você, não importa como, o que eu puder fazer, irei
fazer. Não se preocupa, você não está sozinho. Se me permitir estar com você eu
vou estar. Cara, você é meu amigo, devo muito – enfatizei a palavra muito –,
devo muito a você. Chegou a hora de pagar.
Eu lhe estendi a
mão, ele tomou-a num aperto envolvendo o meu dedão erguido, como sempre
fazíamos quando mais jovens, puxando um ao outro, e ainda segurando a mão,
apertando-nos num abraço.
Eu sorri, e vi
que ele tentou também, mesmo em meio às lagrimas que teimavam em descer. Eu não
havia resolvido o seu problema, mas ele se felicitava ao saber que ao menos não
estaria sozinho.
– Vem – o
chamei. – Vem pra minha casa – o puxei com ele ainda pendurado em meu ombro.
Enlacei-o de forma que ele caminhou comigo, lento, mas determinado.
Com cada passo
conquistado ele melhorava sua postura. Notei que não chorava como antes.
Pessoalmente, eu
odiava o choro, eu odiava pessoas chorando ao meu redor, mas Deus me
presenteara com o choro, Deus levava os inconsolados até a mim, de forma que eu
cumpria meu papel de consolador.
Não diferia com
Tiago, era estranho vê-lo chorar, mesmo abraça-lo, mas era esse meu papel, era
essa minha função no mundo.
Logo estávamos
em minha casa, as paredes frias pareceram recebê-lo como se ali fosse o seu
lugar. Meus pais já haviam se separado, cada um seguira para uma direção, para
lados opostos. Eu não os seguira, eles não insistiram, e por mais que eu
quisesse deixar Desdém, por orgulho eu fiquei ali. A casa foi registrada em
cartório no meu nome, recebia uma pensão de ambos mensalmente, assim eu
conseguia viver. A solidão na casa não era a mim um fantasma, ficar só não me
causava medo, de fato em épocas eu odiava ficar só, foi quando tive a ideia.
Claro, ainda fresca não a verbalizei, mas a trabalhei desde aquele dia.
Com Tiago ali eu
não estava só, estava feliz com isso.
Ele se sentara
na mesa da cozinha, as mãos tremiam depositadas sobre o tampo de granito frio.
Fui a geladeira
e peguei um pouco de água de uma jarra. O copo de vidro tilintava quando ele o
colocou por sobre o granito antes de beber.
– Quer que eu vá
amanhã ao hospital com você? – Perguntei. Vi que um brilho surgiu em seu olhar,
e mesmo antes dele responder eu já sabia de sua resposta.
– Seria… –
pigarreou e continuou. – Seria ótimo.
– Eu não sei da
situação, mas vou tentar ajudar. Meu pai era... – a lembrança de meu pai me
assustava, então espantei o pensamento ruim e continuei. – Meu pai era médico
na cidade antes de ir embora. Conheço boa parte das pessoas que trabalham lá.
Posso ser útil, e no mínimo tentar mudar esse quadro. Meu pai as vezes dizia
que sempre há um meio termo, não sei se isso vale dentro do hospital… mas
podemos tentar acreditar. Minha mãe por
outro lado era sempre otimista, talvez por isso era sempre… – vi que a menção
dos meus pais não o estava deixando bem, então deixei o comentário morrer.
Notando o meu
silenciar, ele pareceu despertar de um transe quando disse:
– Tenho que ir
embora.
Ele largou o
copo ainda cheio por sobre a mesa e se pôs de pé. Não sabia se devia deixa-lo
ir, se devia ir com ele, ou sugerir que ele pudesse ficar. Arrisquei a última
alternativa.
– Se quiser pode
ficar. Está sozinho em casa certo? Eu também. – Vi que ele hesitou. – Não sei o
que prefere, deve estar cansado, amanhã trabalha, certo? Saio no mesmo horário
para ir à escola, não seria um problema… Além do mais eu…
Me calei quando
ele me deu um abraço, um abraço sem jeito, rústico, mas que não deixava de ser
um abraço.
Eu quem quis
chorar. Gostava dele, mesmo que nossa amizade fosse pequena, que eu o visse
raramente, mas eu gostava dele. De todos os livros que peguei com ele gostei –
não sei no que isso interfere, porém… – Eu o via como um irmão, um irmão que
não tive, e que aparentemente, vindo da minha mãe, jamais teria.
– Você salvou
minha vida. – soltou ele se livrando do abraço.
Sem jeito enfiei
as mãos nos bolsos, e endireitando o corpo tentei falar algo belo, mas nada me
veio à mente. De repente, me vi falando sobre quartos, travesseiros e roupas.
– Há dois
quartos lá em cima, ambos próximos do meu, daí pode escolher qualquer um. Eu,
eu… Vou procurar alguns travesseiros, e se quiser tomar um banho, te empresto
um par de roupas limpas. Posso pedir uma pizza mais tarde, pra substituir o
jantar, ou se preferir, posso cozinhar algo. – E a medida que eu ia falando
sobre aquelas coisas, um sorriso ia se pondo no rosto dele, como se a dor, os
problemas, fossem se distanciando lentamente, dando uma pausa, deixando-o
aliviado. Eu andava falando pelos cotovelos pela casa, e ele ria do meu jeito
estranho enquanto pegava um par de sapatos na sala, ou uma toalha de banho na
cozinha, e escondia num armário qualquer. Ele não dizia nada, nem assentia, nem
protestava, apenas olhava, limpava vez ou outra os olhos, e me seguia
timidamente pela casa. Fiquei feliz em vê-lo feliz.
…
Fui visitar
Heloísa no dia seguinte, à pedido dele sozinho. Ele tinha medo de contar pra
ela sobre a situação, então na noite anterior ele “pediu”, entre aspas, que eu
o fizesse.
Fui quando ele
estava no trabalho, na volta da escola. Ainda de uniforme, dei meu jeito e
entrei mesmo não sendo horário de visita. A recepcionista era amiga dos meus
pais, já fora em jantares lá em casa milhares de vezes, se felicitou ao me ver
ali, e naturalmente me permitiu a visita.
Enquanto
caminhava pelos corredores meu coração palpitava, não fazia a mínima ideia do
que fazer, dizer, ou seja lá o que… Havia apenas o medo, e a certeza dentro de
mim.
Entrei decidido
que não contaria a ela, esperaria por Tiago, deixaria que ao menos ele
estivesse presente.
Porém não deixei
de visitá-la. Continuei caminhando pelo corredor determinado a vê-la. Diria que
estou do lado dela, que iria ajudar.
Então eu abri a
porta, lentamente, e a vi. Olhava para
janela com olhar triste, mordia os lábios tentando espantar os pensamentos que
a incomodavam. Notei que ela evitava chorar. Pedi mentalmente que ela não
chorasse.
– Heloísa? –
Chamei.
Ela logo se
virou dispersando o olhar da janela e ajeitando a postura por sobre a cama.
O quarto era
pequeno, a decoração tentava dispersar o ar fúnebre, mas falhava. Tinha ao lado
dela um criado-mudo com um jarro de flores vazio, no lado oposto, próximo à
porta por onde eu entrava um sofá baixo, e outro criado-mudo, porém, este
estava vazio. Haviam maquinas pelo quarto, mas estavam todas desligadas.
Ela sorriu pra
mim. Instantaneamente retribui o sorriso evitando olhar para suas mãos pousadas
na barriga grande. Estaria ela beirando os nove meses. Tal pensamento me
assustou. Restava muito pouco tempo.
– Está tudo bem?
– Perguntei, na verdade, apenas por hábito. Obviamente não estava, mas me
parecia deseducado não fazer tal pergunta.
Ela aquiesceu
com a cabeça. Notei o cansaço em sua face. Haviam olheiras profundas, sua pele
não tinha cor, e seus lábios estavam rachados. Seus olhos pareciam estar em
carne viva, seu cabelo minguara, e seus dedos estavam finos.
– Vim te visitar
– disse torcendo para ela não dizer que não era horário de visitas.
Então ela não o
fez, somente levantou o olhar e comentou:
– Que bom. – Um
sorriso brotou, quase que instantaneamente. – Este lugar ás vezes se parece
vazio. Receber visitas é bom. – Fui cativado pelo seu sorriso, logo sorri. Mas
não pude deixar de notar que ela dissera visitas, no plural.
– Eu estive ontem
conversando com Tiago, – disse sorrateiramente, como quem não quer nada. Ela
pareceu feliz, então me senti seguro para continuar. – Ele me contou sobre… – gaguejei
involuntariamente. – Sobre vocês. Então eu vim te ver e dizer… hã, dizer que
vocês podem contar comigo. Sou sozinho, mas sou útil – disse num tom irônico.
Ela sorriu pra mim. – Sei que as coisas estão sendo difícil, as pessoas aqui em
Desdém não costumam ajudar muito, mas eu vou tentar. Na verdade nem sou
ninguém, mas isso não…
Então ela me emudeceu
com uma única palavra.
– Obrigado.
Dentro dela
havia uma explosão, pude notar, pois os lábios sorriam, os olhos lacrimejavam,
ela hesitava muito antes de falar, ela abria os lábios, mas logo os fechava, e
novamente os abria.
– Ele precisa
muito de um amigo – ela disse logo, obviamente se referindo à Tiago. – Esta
situação o acertou de repente. Ele sofreu tanto quanto eu.
Dei um sorriso
compreensivo, e tomei coragem para me aproximar e sentar-me no sofá branco
próximo à cama. Ela estendeu-me fracamente
a mão. Feliz eu estendi a minha e segurei a dela. O sorriso dela era para mim o
melhor presente do mundo. Ver aqueles lábios rachados se abrindo num sorriso
amarelo causava em mim um êxtase sublime.
– Eu notei que
ele se esforça, que ele gosta mesmo de você. Ele ficou ontem na minha casa, e
logo pela manhã o encontrei indo trabalhar.
Vi o sorriso de
seu rosto se esvair lentamente.
– Eu tenho medo,
medo de estar fazendo-o perder a própria vida…
– Não há o que
temer – assegurei-lhe. – Ele a ama, pode ter certeza. Toda Desdém pode ver
isso.
Naquele dia, ao
sair do hospital, ao voltar para casa, fiz questão de passar na rua da casa de
Tiago. Torcia para vê-lo, mesmo que improvavelmente, vê-lo ali e poder nem que
seja apenas, dizer um oi.
…
Mas estava
preso, e como sempre devia ter sido, sozinho.
Eu não me
conformava, não importavam as circunstância, os fatos. Como aceitar que a
menina que me chamava de Principezinho estava morta?
As paredes não o
fariam por mim, por isso eu as esmurrava. O chão não o faria por mim, por isso
eu caminhava com raiva e com força. Deus não faria isso por mim, por isso eu
não orava.
Queria que elas
morressem, que as lembranças, no pior caso, morressem junto dela. Já não
bastava meu luto? Já não havia perdido repentinamente Raquel? Por que então me
tomavam Gabriele?
A decisão então
fora tomada, havíamos contado a Heloísa, os médicos estavam cientes, e
sobretudo Heloísa e Tiago. Havia um resto de esperança perdido em nossos
corações, esperávamos que naquele dia esta esperança viesse se verter em fatos.
Desdém estava
fria, como se morresse junto de Heloísa.
A cirurgia seria
feita, abririam a barriga de Heloísa, mas não para matar a menina, para
salvá-la. Os médicos estavam sendo otimista, talvez por mim, pois acreditavam
que aquele um por cento de chance dela viver, que o milagre que eu orei a Deus
na noite anterior, seria a chance de vida de Heloísa.
Naquele dia eu
encontrei com Tiago no estacionamento. Soturno, tinha os joelhos encolhidos, e
os braços estendidos por sobre eles. Olhava vez ou outra pro céu quando um raio
ecoava ao longe. Era o som dos raios, o som que denotava seu luto.
Vi em seus
olhos, que mesmo aquela esperança vaga que ele tinha no peito assim como eu,
estava sendo esmagada pelo clima de Desdém. As nuvens não levaram apenas a luz
do dia.
Cheguei por trás
e me aproximando me pus de pé ao seu lado.
– Não vai entrar?
– Perguntei a ele que só notou minha presença depois que comecei a falar.
– Acho que não.
– disse receoso. – ‘Tô com medo.
– Quer que eu
fique aqui com você? Pretendia ficar com você lá dentro, mas… – Me calei quando
notei que não era um momento para ironias.
Ele levantou o
olhar e olhou nos meus olhos. Vi no sorriso que ele esboçou uma resposta
positiva à minha ultima pergunta.
– Já falou com
ela?
– Sim, – ele me
respondeu. – Por isso decidi ficar aqui. – Havia algo oculto naquelas palavras,
eu pude perceber. Ia começar a falar quando ele com o olhar perdido entre os
poucos carros ali completou sua fala. – Ela me disse adeus. – Foi quando o
olhar dele caiu que eu me assentei ali do lado dele, e joguei o braço por sobre
o ombro dele.
– Não sei bem o que
dizer – eu disse quando o silêncio se instalou. – Mas fica sabendo que apesar
de tudo, de tudo mesmo, você pode contar comigo. Sei que as coisas estão
difíceis para você. Bem, vi que estava tendo problemas com aquela casa, e bem,
se quiser, não sei, pode vir morar comigo. Você e elas. Eu, sei lá, moro
sozinho, e…
Ele ergueu as
mãos para limpar o rosto, foi quando as lágrimas realmente caíram. Ele tombou
pro lado, e eu o segurei num abraço. Fiquei em silêncio, e ele sussurrou umas
seis vezes para mim a mesma coisa.
– Obrigado!
…
Preso ali, já
mais calmo, eu vi o sol nascendo lá longe, pela pequena janela no fundo da
sala. Muito além, depois do bosque ali atrás, do descampado e dos montes lá
longe, o sol apareceu lentamente. A sua luz tênue pousou em mim, no meu rosto
rígido, na face onde as lágrimas que outrora rolaram, agora estavam secas.
Ali vendo o sol,
lembrei-me de Tiago naquele dia diante o hospital, de como ele disse que ao
conversar com Heloísa, haviam escolhido um nome para aquela menina, e que por
minha causa, colocariam nela o nome de Gabriele.
Haviam lágrimas
em seu rosto naquele dia, e num dejà-vú, haviam lágrimas abundantemente no meu
rosto encarcerado.
O choro dura uma noite, mas pela manhã vem a alegria. Era Gabriele quem recitava tal frase. Estaria ela
mentindo? Preferia acreditar que não.
De manhã vieram
os guardas, e o meu cárcere que antes parecia vazio, agora estava cheio de
pessoas vazias.
Meu corpo estava
exausto, pesado, como se houvessem amarrada a cada membro um navio. Eu adormeci
quando vi os homens fardados entrando. Tinha esperanças de que ao menos
enquanto dormia o meu luto se afastasse.
Mas ele me
impedia de dormir, de quando em quando eu abria os olhos e via lá longe os
guardas se movendo, alguns conversavam, ouvia as vezes partes de conversas
perdidas chegando até a mim, até que meu corpo cedesse e o sono me dominasse.
Fui desperto a noite,
quando um guarda abria minha cela. Suas chaves tilintavam tanto que me soavam
num sonho ao qual eu não me lembro mais, como um velho despertador.
Havia atrás dele
uma garota, ainda entorpecido pelo sono não a reconheci, mas logo seu rosto me
foi visível, quando um guarda me tomou pelo braço com força e me arrastou cela
afora.
A garota tinha
feições doces, e tinha no colo uma criança que ainda persistia não se rendendo
ao sono.
Eu não disse
nada, só me deixei ser conduzido para fora.
Logo me puseram
sentado num banco o qual a garota logo se assentou comigo, ajeitando a criança
em seu colo. A menina tinha olhos cansados, mas me fitava intensamente.
Em silêncio,
ficamos por cerca de cinco minutos. Olhávamos para a parede diante de nós
quando um guarda veio me chamar, e me levar para uma sala reservada.
O sono me
consumia, havia uma mesa, cadeiras, um homem sentado, e uma garrafa de café no
fim da sala.
Quando o guarda
me soltou fui até a garrafa de café, peguei um dos pequenos copos descartáveis
e enchendo-o de café fervente, tomei.
Não vi quem era
o homem, havia em sua farda seu nome e sua função, mas ignorei, o sono que aos
poucos se esvaía não me permitiu.
Ele me estendeu
algumas folhas, não dizia nada, assim como todos ali, parecia estar mudo. De
pouco em pouco, ele analisava as folhas e me estendia para assinar.
Assinei o mais
rápido que pude. A caligrafia torta preenchia em segundos o espaço em que ele
me indicava. Quanto mais rápido, pensei, mais cedo eu estaria longe dali.
Ele logo me liberou,
e com o corpo ainda cansado, cambaleei para fora dali.
Quando passei
por um guarda, um desejo interno queria que eu levantasse o dedo do meio e
apontasse para ele, porém a minha parte ainda sã já havia despertado.
Ignorei e segui
para fora dali.
Quando passei
pela sala de espera, o beco estreito onde haviam me deixado com aquela garota
por sobre um banco desconfortável, a mesma garota me seguiu.
Quando vi que
ela se levantou e vinha em minha direção, me virei a ele e lancei a pergunta.
– Quem é você? –
Minha voz falhava, uma rouquidão havia se apossado de minha garganta. Tossi.
– Geórgia – ela
disse como se o nome devesse me soar familiar.
Dei-lhe as
costas e comecei a caminhar. Mas em contradição ela se fez insistente, e mesmo
com a criança no colo me seguiu.
– É… – começou a
falar, parecia retraída por alguma coisa. Minha aparência não era das melhores.
Tinha as mãos machucadas, e os olhos fundos. – É que preciso falar com você.
Talvez eu esteja ficando louca, mas eu preciso da sua ajuda.
– Não vejo em
como lhe posso ser útil. – disse o mais educado possível e lhe dei mais uma vez
as costas. Estava louco para deixar aquele lugar, e ela parecia, na mesma forma
que eu queria sair, disposta a me atrasar.
– Por favor. –
ela pediu.
Eu não queria a
presença daquela menina, queria ir pra casa e ver como estava Tiago. Queria
poder tomar um banho frio e simplesmente dormir.
– Diga-me logo o
que quer. – depois de um tempo vi que havia gritado, me arrependi, eu não era
assim. O que estava acontecendo comigo?
– Primeiramente,
me desculpa. – ela disse se sentindo culpada pelo meu grito.
– Não. Eu é quem
me desculpo. Sinceramente, só estou com alguns problemas.
– Você a perdeu
né? – instantaneamente olhei para a criança em seus braços. O que sabia ela
sobre perdas?
– Desculpa, eu
preciso ir embora.
– Espera, – ela
gritou quando eu comecei a apertar o passo. – Por favor, – ela sussurrou
apenas, mas pude ouvir quando saímos da delegacia e adentramos na noite
silenciosa de Desdém. – Eu preciso da sua ajuda. Você é minha última esperança.
Não sabia se
devia parar e ajuda-la. Eu era o consolador, era apenas esse o meu papel.
– Então diga o
que quer.
– Eu, eu… – ela
tinha medo de pedir, era óbvio. – Eu preciso ir onde encontraram-na… – ela
deixou o fim da frase vazio. No fundo ela temia dizer seu nome.
– Quem? –
Perguntei calmamente.
– Raquel.
Fiquei em
silêncio, ela respeitou esse meu momento.
Não! Eu queria
gritar para a garota. Eu não podia voltar lá, não podia mesmo. Já não me
bastava a dor pulsante de perder Gabriele, teria que recordar a dor que
relutante me deixara, a dor da perda de Raquel?
– Eu não posso.
Desculpa.
Eu não sabia o
que se passava na cabeça dela, nem me importava, só lhe dei as costas.
Havia dado cinco
passos quando a voz da criança me alcançou.
– Mas ele tem
que nos ajudar. Gege, vai atrás dele. Por Favor. – Então uma voz cortante de
choro saiu dos lábios dela. – Por Favor Gege, eu tô com medo.
Eu não pude
deixa-las, involuntariamente eu tive que me virar e dizer algo a elas.
– Venham comigo.
E elas me seguiram, como sombras,
ambas em silencio, um silêncio cortante, um silêncio intenso.
Houve momentos em que me virava
para trás e olhava para elas, Geórgia sorria, apenas por gratidão.
Quando nos
dispomos diante da minha casa, as luzes acesas me fizeram cogitar abandoná-las,
mas não o fiz. Eu queria ir pra dentro, e no meu quarto poder chorar, poder
andar pela casa com o livro do principezinho
nas mãos até chegar ao quarto dela. O rosa zombaria do meu luto, mas meus olhos
só darão atenção a ausência dela.
Ao invés de
deixa-las, vendo que Geórgia estava cansada carregando a menininha, fiz menção
de pegá-la para que Geórgia descansasse um pouco. Com o ato perguntei-lhe seu
nome, e a menina, agora sorridente me respondeu Julie.
Dali, do outro
lado da rua, distante até mesmo da minha casa, olhávamos para o bosque que
tomava os montes depois da rua. Separavam-nos apenas alguns metros de asfalto
gasto, uma casa, uma cerca, e as colinas, a funesta colina.
Julie adormeceu
recostada em meu ombro, de tempo em tempo eu acariciava seus cabelos e ela
grunhia e se alinhava em meu peito. Geórgia se limitava a um sorriso.
– Então? –
Perguntei tentando criar ali um começo de uma conversa. – O que procuras?
– Eu… Eu… – ela
parecia tão incerta quanto eu.
– Não sabe? –
completei por ela. – Legal, – menti. Aquilo nem de longe era legal, era
loucura. – É logo ali. – disse apontando pro alto da menor colina com o braço
que não segurava Julie.
Aquele lugar era
lindo, mesmo sendo cena de um assassinato. As colinas difusas, incertas, onde
no sopé, por uma fenda crescia uma gigantesca árvore. Mesmo sob a luz da lua,
pude ver as flores amarelas na árvore. Ela amava amarelo.
Desviei o olhar
com o último pensamento.
– Foi ali. – eu
disse parando no limite das árvores, onde o bosque tinha início, era até onde
eu me limitava ir.
Ela segurou meu
braço com uma mão, bem suavemente, e com o olhar deu-me um já adiantado obrigado.
– Geórgia! –
Chamei num grito baixo. Havia o ensurdecedor barulho dos insetos noturnos. –
Agora eu é quem estou com medo. – Ela fingiu não me ouvir. – Talvez não tenha
nada ai. As vezes as coisas simplesmente acontecem. Geórgia! Foi só um
incidente isolado, um acaso.
– É aqui? – Ela
se virou e perguntou, como se até então eu nada tivesse dito. – Parece normal
demais.
– Sim, é aqui. –
Respondi. – Talvez não haja nada aqui, e isso seja loucura. Às vezes acidentes
acontecem. Pessoas morrem, Geórgia. Talvez devamos aceitar. – Queria eu poder
acatar os conselhos que minha própria voz dava. – Se tentarmos esquecer, quem
sabe tudo não fique bem? Enfim, você, sei lá, seja feliz com sua nova família,
e eu me conforme em minha perda.
Ela meditava no
que eu falava, pela primeira vez tive certeza que ela me ouvira. Mas não foi o
suficiente para pará-la.
Ela continuou
buscando por algo, mexia nas pedras, agitava a terra seca com os pés. Seu vulto
era como um fantasma no meio das árvores.
– Ela está
acordando. – menti na esperança de com isso ela desistir e ir pra casa.
– Gabriel! – o
grito dela me partiu ao meio. Ouvi o som de terra, de folhas, e do corpo dela
caindo. Mas não havia para onde cair, o terreno era suficientemente plano. Foi
quando notei a cratera se formando no chão.
Com medo recuei
alguns passos com Julie no colo. As árvores tombavam, e eu as via caindo em
cima de nós.
– Geórgia!
Geórgia! – Gritei. Então, assim como começara, repentinamente cessou. As
árvores se mantiveram de pé, enquanto as que caíram jaziam no chão. Havia uma
cratera funda, talvez no tamanho de um cômodo de uma casa.
Até onde minha
vista alcançava, o chão se abria diante de Geórgia, que lá no fundo jazia
caída, como uma caverna. Somente ela viu, não pude distinguir o que era na
escuridão da noite.
– Eu estou bem!
– Ela gritou lá de baixo. Sua voz chegou até mim fraca, tamanha era a
profundidade daquele buraco. – Bem vindo à Toca do Coelho. – O tom de sua voz
era feliz, havia certo orgulho mascarando o medo. – Hei, Gabriel! Leve Julie daqui,
traga cordas, e lanternas. Se possível ajuda, mas somente alguém de confiança.
Acho que vamos para Wonderland.
Não gostava de
seu tom irônico, mas no entanto, fui correndo pra casa, com Julie em meu colo,
e um medo preso à garganta. Não foi assim que me imaginei indo pra casa, não
era assim que pretendia olhar para Tiago.
Mas precisava
ser.