quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

8 - Georgia


   Eu só podia ver o borrão de cores que era a tarde lá fora se movimentando rapidamente através das gotas d’água.
   – As flores estão se despedaçando – Julie choramingou, a voz aguda e esganiçada – e eu tenho medo dos trovões, você sabe. Depois reprimiu um soluço, agarrando-se a mim.
   – Eu sei, vai ficar tudo bem. – Fazer promessas falsas a crianças de cinco anos, às vezes isso é tudo que podemos fazer.
   Eu já havia me acostumado ao som constante do motor do ônibus, e a vibração irritadiça na poltrona gasta e velha não era mais incômoda, como no inicio da viagem. Era bom que fosse assim. Eu teria que estar preparada para suportar coisas desagradáveis de agora em diante.
   O homem careca na poltrona à frente, quase deitado no meu colo, roncou alto como um porco. Julie assustou-se, e se ela começasse a choramingar novamente, eu me prometi, esmurraria o filho da mãe.
   No reflexo embaçado do vidro, encarei meus olhos. Acho que eles nunca haviam sido tão tristes assim. Pareciam tão sem vida quanto às flores que estavam sendo arrancadas pelas raízes lá fora, na tempestade. 
   Eu e meu drama...
   Coisas assim podem acontecer quando uma das poucas pessoas que você já amou morrem.
   – Georgia, não consigo dormir! – Desde quando Anna, a única mãe que conhecemos, se foi, eu me sentia responsável por Julie. 
   Afinal.  Era errado que eu me sentisse assim, quando não havia sequer traços sanguíneos que nos ligassem? E a resposta sempre era sim. Eu imaginei uma ou duas vezes, após a morte da nossa mãe adotiva, enquanto ainda estávamos no orfanato, deixar que Julie seguisse seu caminho em uma família diferente, porque sabia que ninguém poderia ser feliz estando comigo. Eu era unicamente tristeza. Mas então descobri que não poderia deixá-la ir, quando a Sra. Robem disse que o Sr. Margate, irmão de Anne, iria adotá-la.
   – Ele queria apenas a menor, gostou muito dela, disse que a irmã morta ficaria em paz, onde quer que estivesse – disse ela, da sua cadeira de camurça macia, quando eu ainda estava chorando – mas acho que posso empurrar você também, se ele gostou tanto assim da menina. Afinal, você também morava com Anna. E você já é quase adulta, pode trabalhar. E pare com esse choro, querida!
   E foi assim, uma semana depois, que fomos parar naquele ônibus com lâmpadas quebradas e janelas embaçadas. Nosso futuro era desconhecido. Estávamos indo em direção a Desdém, mas isso não importava, contanto que Julie estivesse bem.

...

   Quando chegamos a Desdém, o céu parecia uma imensa bacia de detergente azul com manchas brancas. A pintura abstrata de Van Gogh numa aula da 4ª série, quando eu nem conhecia Anna ou Julie, me veio à mente. Eu nunca esqueceria aquela aula. Jéssica, uma garota mais velha, derramou tinta em mim, e perdeu alguns cachos do seu cabelo loiro perfeito.
   A chuva já havia parado a algum tempo, mas ainda ventava e fazia frio. Julie estava envolta de mim, com as pernas ao redor do meu abdômen e os bracinhos sufocando meu pescoço. Ela estava dormindo a algum tempo e não seria uma boa ideia acordá-la.
   Ao nosso redor a cidade se estendia. Desconhecida, velha e quieta com alguns prédios comercias, casas pequenas e simples. Calçadas de ladrilhos trincados e sujos. Parecia comum. Talvez Desdém fosse um bom lugar para se viver.
   O motorista com bigode de leão marinho trouxe nossas malas e as colocou perto de mim, na estação.
   – Está esperando alguém, filha? – eu não respondi, ainda estava tentando conhecer a cidade. Ela era comum, mas diferente das outras. Não tente me entender – Não é bom ficar sozinha à noite por ai. Essa é uma cidade pequena, mas você tem uma criança aí, tem que tomar conta dela.
   – Ele já vem – foi o que eu disse, para que ele se calasse. Havia uma mulher dentro do ônibus agora. Ela tinha um bebê no colo e uma expressão de alivio, como se tivesse se livrado de algo horrível. Ai eu percebi que ela ocupava meu assento e de Julie. A mulher estava indo embora então. Tinha subido agora e estava feliz por isso. O motorista entrou no ônibus sujo de terra e se foi.
   Estava escurecendo e o irmão de Anne ainda não havia chegado. Apertei o cachecol desbotado e tentei inutilmente carregar as malas segurando minha irmã morta no meu colo, sem despertá-la. Fracassei e dei chutes nas malas até ficarem perto o suficiente de um dos bancos da estação.
   – Está tudo bem, querida? – uma senhora perguntou, do balcão da lanchonete. – precisa de algo? Um refrigerante?
   Agradeci e recusei. Na verdade estava com fome. Julie havia comido os últimos sanduiches preparados para a viagem, mas não tínhamos dinheiro algum. Foi então que ouvi as sirenes da viatura, um barulho estranhamente confortador.
   Na noite, as luzes azuis ficavam mais intensas e chamativas.
O Sr. Margate saiu desajeitado de dentro do carro. Ele me lembrou a mim mesma, tropeçando nos cadarços nos recreios, no orfanato.
   – Me desculpem se demorei. Coisas pra cuidar na delegacia, nunca é assim por aqui, eu demorei? Desculpe-me de verdade – ele parecia incomodado com algo, perturbado. – Faz tempo que estão esperando?
   – Está tudo bem. Sr. Margate?
   – Sim, otimo. 
   – Pode me ajudar com Julie? Ela esta mais pesada, que antes de entrar no ônibus.
   Ele a tomou nos braços, fazendo-me sentir solitária.
   Assim, entramos na viatura e fomos para casa.
   Naquela noite eu não dormi. Minha mente estava inundada de pensamentos: Eu pensava em Julie e em como ela precisava de mim e eu dela, e também pensava em como ela não precisava mais, afinal, ela tinha uma família agora. Pensava no  Sr. Margate também, e em seus motivos para adotar Julie e a mim, quando haviam dezenas de crianças que sorriam no orfanato. Pensava em Anne e no porque ela tinha ter que morrido, justo quando minha vida era menos infeliz com ela. Era egoísta pensar assim, mas eu nunca me julguei uma boa pessoa.

...

   Na semana seguinte fui à escola. Era como em todo o resto da cidade, pessoas tristes ou algumas que forçavam sorrisos, por todos os cantos.
   Fui uma das primeiras a chegar. Aos poucos a sala se enchia e o professor pedia silêncio constantemente. Eu gostava de química. Amava estudar. Só não gostava de viver.
  Quando a aula acabou  Sr. Margate e Julie estavam na porta da escola. Ele havia sido legal com Julie e comigo durante toda a semana, quase... Paternal, mas era alguém fechado para conversas. Teve momentos que o imaginei sofrendo a perda de Anne tanto quanto nós duas. Talvez estivesse.
   Iriamos ao cinema num dia próximo, ele havia prometido. 
   Eu sei, tudo estava rápido demais, mas era melhor aceitar as mudanças. Elas viriam hora ou outra de qualquer maneira.
   Julie usava meias listradas de laranja e rosa e seu cabelo estava alto e despenteado, as bochechas coradas e os olhos inchados de tanto chorar. Alguém chamou o  Sr. Margate antes que eu os alcançasse. Ele acenou com a mão, já volto. Eu ainda estava impressionada com a forma que todos se conheciam naquela cidade.
   – Ei, está tudo bem? – era um garoto da aula de química, o que chegara atrasado. Eu tentei sorrir, era péssima com garotos.
   Minha voz prendeu na garganta, mas ele pareceu não perceber ou não se importou.
   – Está sim, só minha irmã caçula me causando alguns problemas – eu vi os olhos dele outra vez. Pareciam tristes, mas na luz na manhã eram lindos. Não que isso importasse para mim.
   – Ela é uma menina muito linda – ele estava fazendo aquilo errado, ela não gostava de ser paparicada – Você não devia chorar, é uma menina linda demais pra chorar. As pessoas não vão perceber sua beleza se a tristeza estiver estampada no seu rosto – Julie o lançou um olhar frio, mas ninguém o reconheceria. Ela era realmente angelical.
   – Qual seu nome? Você é o garoto que chegou atrasado, certo? –  eu perguntei. Ele já devia saber algo sobre as duas irmãs Margate, novas em Desdém. 
   – Sou Kobe, e sim, sou eu sim. Não devo ter deixado uma boa impressão. E você?
   Eu hesitei. Pensei nas dezenas de vezes no orfanato em que evitávamos nos tratar por nomes. Fazia você se apegar menos. Mas eu não estava mais lá.

– O que?

– Acho que tem um nome. 

– Oh! Desculpa – Logo me dei conta do que tinha falado. – Geórgia.Me chamo Geórgia.
– Prazer em te conhecer, Geórgia – ele disse meio que sem saber o que completar.
– O prazer é meu. Kobe? Certo? – Eu estava corada, e podia ver que ele também.

...

Já era noite em Desdém. Eu estava sentada na grama, em frente à casa do sr. Margate, com Julie e sua Barbie Pop Star, esperando que ele voltasse. A cidade era silenciosa à noite. Quieta e sem vida.
A Temperatura estava caindo desde que havíamos chegado a Desdém. A respiração formava pequenas nuvens de nevoa a nossa frente, de acordo com as arfadas de ar. Era constrangedor, mas o frio me fazia lembrar os olhos do garoto. Kobe. O verde frio e impenetrável, contudo frágil e gentil. Eu me odiaria se me deixasse apaixonar por aquele desconhecido estranho. A mudança de rotina tão brusca, finalmente devia estar surtindo os efeitos negativos em mim.
Eu já estava arrumando a caixa de brinquedo de Julie, quando o som horrendo se fez ouvir alto e estridente na rua vazia. O som de metal rompendo e sendo rompido. As chamas cresceram rápido, pareciam alcançar o céu.
De repente Desdém acordou e o formigueiro de pessoas invadiu a rua. Havia um ônibus em chamas com crianças dentro. E elas estavam presas para morrerem queimadas.
Todos estavam tentando fazer algo. Com baldes, mangueiras ou ligando para a emergência. Julie apertou forte minha mão.
Em meio à aflição, lembrei que sr. Margate havia falado algo sobre essa ser a noite do acampamento para os garotos. Os garotos que deviam estar morrendo agora. Próximo ao ônibus havia uma viatura em ruinas, era a do sr. Margate, a placa dizia.
O barulho da multidão pareceu ir a segundo plano quando vi sr. Margate no seu banco do motorista, o pescoço retorcido em um ângulo impossível, banhado em sangue. Então a viatura explodiu em uma chuva de labaredas azuis e vermelhas.

Por: Francisco Caio

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