Eu só podia ver o borrão de cores que
era a tarde lá fora se movimentando rapidamente através das gotas d’água.
– As flores estão se despedaçando –
Julie choramingou, a voz aguda e esganiçada – e eu tenho medo dos trovões, você
sabe. Depois reprimiu um soluço, agarrando-se a mim.
– Eu sei, vai ficar tudo bem. – Fazer promessas falsas a crianças de cinco anos, às vezes isso é
tudo que podemos fazer.
Eu já havia me acostumado ao som
constante do motor do ônibus, e a vibração irritadiça na poltrona gasta e velha
não era mais incômoda, como no inicio da viagem. Era bom que fosse assim. Eu
teria que estar preparada para suportar coisas desagradáveis de agora em
diante.
O homem careca na poltrona à frente,
quase deitado no meu colo, roncou alto como um porco. Julie assustou-se, e se
ela começasse a choramingar novamente, eu me prometi, esmurraria o filho da
mãe.
No reflexo embaçado do vidro, encarei
meus olhos. Acho que eles nunca haviam sido tão tristes assim. Pareciam tão sem
vida quanto às flores que estavam sendo arrancadas pelas raízes lá fora, na
tempestade.
Eu e meu drama...
Coisas assim podem acontecer
quando uma das poucas pessoas que você já amou morrem.
– Georgia, não consigo dormir! – Desde
quando Anna, a única mãe que conhecemos, se foi, eu me sentia responsável por
Julie.
Afinal. Era errado que eu me sentisse assim, quando não havia sequer
traços sanguíneos que nos ligassem? E a resposta sempre era sim. Eu imaginei
uma ou duas vezes, após a morte da nossa mãe adotiva, enquanto ainda estávamos
no orfanato, deixar que Julie seguisse seu caminho em uma família diferente,
porque sabia que ninguém poderia ser feliz estando comigo. Eu era unicamente
tristeza. Mas então descobri que não poderia deixá-la ir, quando a Sra. Robem disse que o Sr. Margate, irmão de Anne, iria adotá-la.
– Ele queria apenas a menor, gostou
muito dela, disse que a irmã morta ficaria em paz, onde quer que estivesse –
disse ela, da sua cadeira de camurça macia, quando eu ainda estava chorando –
mas acho que posso empurrar você também, se ele gostou tanto assim da menina. Afinal, você também morava com Anna. E você já é quase adulta, pode trabalhar. E pare com
esse choro, querida!
E foi assim, uma semana depois, que
fomos parar naquele ônibus com lâmpadas quebradas e janelas embaçadas. Nosso futuro
era desconhecido. Estávamos indo em direção a Desdém, mas isso não importava,
contanto que Julie estivesse bem.
...
Quando chegamos a Desdém, o céu parecia
uma imensa bacia de detergente azul com manchas brancas. A pintura abstrata de Van
Gogh numa aula da 4ª série, quando eu nem conhecia Anna ou Julie, me veio à
mente. Eu nunca esqueceria aquela aula. Jéssica, uma garota mais velha, derramou
tinta em mim, e perdeu alguns cachos do seu cabelo loiro perfeito.
A chuva já havia parado a algum tempo,
mas ainda ventava e fazia frio. Julie estava envolta de mim, com as pernas ao
redor do meu abdômen e os bracinhos sufocando meu pescoço. Ela estava dormindo
a algum tempo e não seria uma boa ideia acordá-la.
Ao nosso redor a cidade se estendia.
Desconhecida, velha e quieta com alguns prédios comercias, casas pequenas e
simples. Calçadas de ladrilhos trincados e sujos. Parecia comum. Talvez Desdém
fosse um bom lugar para se viver.
O motorista com bigode de leão marinho
trouxe nossas malas e as colocou perto de mim, na estação.
– Está esperando alguém, filha? – eu
não respondi, ainda estava tentando conhecer a cidade. Ela era comum, mas
diferente das outras. Não tente me entender – Não é bom ficar sozinha à noite
por ai. Essa é uma cidade pequena, mas você tem uma criança aí, tem que tomar
conta dela.
– Ele já vem – foi o que eu disse, para
que ele se calasse. Havia uma mulher dentro do ônibus agora. Ela tinha um bebê
no colo e uma expressão de alivio, como se tivesse se livrado de algo horrível.
Ai eu percebi que ela ocupava meu assento e de Julie. A mulher estava indo
embora então. Tinha subido agora e estava feliz por isso. O motorista entrou no
ônibus sujo de terra e se foi.
Estava escurecendo e o irmão de Anne
ainda não havia chegado. Apertei o cachecol desbotado e tentei inutilmente
carregar as malas segurando minha irmã morta no meu colo, sem despertá-la.
Fracassei e dei chutes nas malas até ficarem perto o suficiente de um dos bancos da
estação.
– Está tudo bem, querida? – uma senhora
perguntou, do balcão da lanchonete. – precisa de algo? Um refrigerante?
Agradeci e recusei. Na verdade estava
com fome. Julie havia comido os últimos sanduiches preparados para a viagem, mas
não tínhamos dinheiro algum. Foi então que ouvi as sirenes da viatura, um
barulho estranhamente confortador.
Na noite, as luzes azuis ficavam mais
intensas e chamativas.
O Sr. Margate saiu desajeitado de
dentro do carro. Ele me lembrou a mim mesma, tropeçando nos cadarços nos
recreios, no orfanato.
– Me desculpem se demorei. Coisas pra
cuidar na delegacia, nunca é assim por aqui, eu demorei? Desculpe-me de verdade
– ele parecia incomodado com algo, perturbado. – Faz tempo que estão esperando?
– Está tudo bem. Sr. Margate?
– Sim, otimo.
– Pode me ajudar com Julie? Ela esta mais pesada, que antes de entrar no
ônibus.
Ele a tomou nos braços, fazendo-me
sentir solitária.
Assim, entramos na viatura e fomos para
casa.
Naquela noite eu não dormi. Minha mente
estava inundada de pensamentos: Eu pensava em Julie e em como ela precisava de
mim e eu dela, e também pensava em como ela não precisava mais, afinal, ela
tinha uma família agora. Pensava no Sr. Margate também, e em seus motivos para adotar
Julie e a mim, quando haviam dezenas de crianças que sorriam no orfanato.
Pensava em Anne e no porque ela tinha ter que morrido, justo quando minha vida
era menos infeliz com ela. Era egoísta pensar assim, mas eu nunca me julguei
uma boa pessoa.
...
Na semana seguinte fui à escola. Era como em todo o resto da cidade, pessoas tristes ou algumas que forçavam
sorrisos, por todos os cantos.
Fui uma das primeiras a chegar. Aos
poucos a sala se enchia e o professor pedia silêncio constantemente. Eu
gostava de química. Amava estudar. Só não gostava de viver.
Quando a aula acabou Sr. Margate e Julie estavam
na porta da escola. Ele havia sido legal com Julie e comigo durante toda a
semana, quase... Paternal, mas era alguém fechado para conversas. Teve momentos
que o imaginei sofrendo a perda de Anne tanto quanto nós duas. Talvez estivesse.
Iriamos ao cinema num dia próximo, ele
havia prometido.
Eu sei, tudo estava rápido demais, mas era melhor aceitar as
mudanças. Elas viriam hora ou outra de qualquer maneira.
Julie usava meias listradas de laranja
e rosa e seu cabelo estava alto e despenteado, as bochechas coradas e os olhos
inchados de tanto chorar. Alguém chamou o Sr. Margate antes que eu os alcançasse. Ele
acenou com a mão, já volto. Eu ainda
estava impressionada com a forma que todos se conheciam naquela cidade.
– Ei, está tudo bem? – era um garoto da
aula de química, o que chegara atrasado. Eu tentei sorrir, era péssima com garotos.
Minha voz prendeu na garganta, mas ele
pareceu não perceber ou não se importou.
– Está sim, só minha irmã caçula me causando alguns problemas – eu vi os olhos dele outra vez. Pareciam tristes, mas na luz na manhã eram lindos. Não que isso importasse para mim.
– Ela é uma menina muito linda – ele
estava fazendo aquilo errado, ela não gostava de ser paparicada – Você não devia
chorar, é uma menina linda demais pra chorar. As pessoas não vão perceber sua
beleza se a tristeza estiver estampada no seu rosto – Julie o lançou um olhar
frio, mas ninguém o reconheceria. Ela era realmente angelical.
– Qual seu nome? Você é o garoto que chegou atrasado, certo? – eu perguntei. Ele já devia saber algo sobre as duas irmãs Margate,
novas em Desdém.
– Sou Kobe, e sim, sou eu sim. Não devo ter deixado uma boa impressão. E você?
Eu hesitei. Pensei nas dezenas de vezes
no orfanato em que evitávamos nos tratar por nomes. Fazia você se apegar menos.
Mas eu não estava mais lá.
– O que?
– Acho que tem um nome.
– Oh! Desculpa – Logo me dei conta do que tinha falado. – Geórgia.Me chamo Geórgia.
– Prazer em te conhecer, Geórgia – ele disse meio que sem saber o que completar.– O prazer é meu. Kobe? Certo? – Eu estava corada, e podia ver que ele também.
...
Já era noite em Desdém. Eu estava
sentada na grama, em frente à casa do sr. Margate, com Julie e sua Barbie Pop Star,
esperando que ele voltasse. A cidade era silenciosa à noite. Quieta e sem vida.
A Temperatura estava caindo desde que
havíamos chegado a Desdém. A respiração formava pequenas nuvens de nevoa a
nossa frente, de acordo com as arfadas de ar. Era constrangedor, mas o frio me
fazia lembrar os olhos do garoto. Kobe. O verde frio e impenetrável, contudo
frágil e gentil. Eu me odiaria se me deixasse apaixonar por aquele desconhecido
estranho. A mudança de rotina tão brusca, finalmente devia estar surtindo os
efeitos negativos em mim.
Eu já estava arrumando a caixa de
brinquedo de Julie, quando o som horrendo se fez ouvir alto e estridente na rua
vazia. O som de metal rompendo e sendo rompido. As chamas cresceram rápido,
pareciam alcançar o céu.
De repente Desdém acordou e o
formigueiro de pessoas invadiu a rua. Havia um ônibus em chamas com crianças
dentro. E elas estavam presas para morrerem queimadas.
Todos estavam tentando fazer algo. Com
baldes, mangueiras ou ligando para a emergência. Julie apertou forte minha mão.
Em meio à aflição, lembrei que sr. Margate havia falado algo sobre essa ser a noite do acampamento para os garotos. Os
garotos que deviam estar morrendo agora. Próximo ao ônibus havia uma viatura em
ruinas, era a do sr. Margate, a placa dizia.
O barulho da multidão pareceu ir a
segundo plano quando vi sr. Margate no seu banco do motorista, o pescoço retorcido em
um ângulo impossível, banhado em sangue. Então a viatura explodiu em uma chuva
de labaredas azuis e vermelhas.
Por: Francisco Caio
Por: Francisco Caio
Nenhum comentário:
Postar um comentário